A Violência Silenciosa: o eclipse do ‘ethos’ humano no mundo contemporâneo
Gilberto Safra
A realidade compartilhada é construção de muitos, é campo em que existe a construção de todos. Com Arendt, poderíamos afirmar que a Existência é o que aparece a todos. O indivíduo precisa entrar no mundo para que o indivíduo sinta-se vivo e existente, mas tem de ser de uma maneira singular e pessoal. A hospitalidade precisará ser reencontrada por todo ser humano ao longo do percurso de sua vida, para que sua sanidade seja preservada. No processo de inserção do ser humano no mundo, ocorre sua participação na sociedade por meio do trabalho, do discurso, da obra, da ação política, ou seja, da capacidade criativa acontecendo no mundo com os outros. Pela ação criativa no mundo, o homem colabora com a durabilidade do mundo e com o processo histórico da sociedade. O ser humano encontra a raiz de seu self por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade, que conserva vivos certos tesouros do passado e certo pressentimento do futuro.
Aqueles que não encontram suas raízes têm, habitualmente, dois comportamentos possíveis: ou caem numa inércia de alma equivalente à morte ou se lançam em uma atividade que perpetua o desenraizamento, podendo originar situações de intensa violência e de intolerância. Em nossa época, esse tipo de problemática é bastante sério. Nossa cultura manifesta-se, na atualidade, de uma maneira que já não mais reflete a medida humana. Recriar o mundo e o campo social torna-se mais complicado, pois, pela invasão da técnica como fator hegemônico da organização social, o ser humano só mais raramente encontra a medida do seu ser, que permita o estabelecimento do sentido de si a cada um dos níveis de realidade para a constituição e o devir de seu ser.
O resultado desse fenômeno é o aparecimento de novas formas de subjetivação e da violência como expressão de fraturas éticas sofridas e não reconhecidas pelo outro. A arte, a cultura tem uma possibilidade bastante fecunda de curar o homem contemporâneo por meio de uma ação resistente que abra a memória do ethos humano e de sua ética.
* Psicanalista, Professor Titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP; Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados – Núcleo de Psicanálise – PUC/SP; Coordenador do Laboratório de Estudos da Transicionalidade da PUC/SP.