Rituais indígenas que não se apagam: a catequização frustrada

Ronaldo Vainfas


O tema de minha comunicação retoma, em linhas gerais, o de meu último livro, A heresia dos índios, publicado em 1995, resultado da pesquisa que realizei no Brasil e em Portugal por cerca de 6 anos.

É trabalho que procura adotar uma perspectiva histórico-antropológica sobre um movimento indígena ocorrido na Bahia (séc.XVI) que foi, ao mesmo tempo, rebelião armada e seita religiosa contra o colonialismo português, contra a escravidão e contra a catequese jesuítica. Movimento de resistência sociocultural, portanto, apesar de conter, na sua própria estrutura, traços do catolicismo e do próprio colonialismo contra o qual os índios lutaram.

O movimento ficou conhecido como Santidade, nome que lhe foi dado paradoxalmente pelos jesuítas e se difundiu na Bahia, na região de Jaguaripe, durante a década de 1580. A Santidade de Jaguaripe foi, sem dúvida, a principal manifestação de rebeldia indígena no século XVI, mas não foi a única. Vários movimentos de migração Tupinambá, ou mesmo de guerra, vinham ocorrendo no litoral desde meados do século, todos eles provocados pela pregação de caraíbas, grandes pajés indígenas que tradicionalmente pregavam a busca da Terra sem Mal ou sem Males. É o que nos indica a vasta bibliografia etnológica sobre os Tupi-Guarani (Métraux, Florestan, Maria Isaura e tantos outros). A Santidade de Jaguaripe é, porém, a melhor documentada, a que mais permite uma análise  verticalizada, dado que sobre ela há copiosa documentação da Inquisição depositada no ANTT, em Lisboa. Mais tarde veremos o por quê da existência de fontes inquisitoriais sobre esta importante Santidade.

Causa estranheza, a propósito, que a Santidade não tenha despertado antes a atenção de nossos historiadores. Quase nada se havia escrito sobre ela, salvo pontualmente e sem profundidade, em livros sobre outros temas. A única honrosa exceção foi o opúsculo do folclorista José Calasans, datado de 1952, trabalho útil e bem feito, mas que não utilizou os processos completos e manuscritos da Inquisição.

A ausência de estudos é, como disse, surpreendente, tendo em vista o farto manancial de fontes disponíveis há muito tempo. É o caso de fontes publicadas, a exemplo das crônicas de viajantes; é o caso da correspondência jesuítica, da documentação do governo colonial e das confissões e denúncias do Santo Ofício utilizadas por Calasans. Mas é verdade que as principais fontes são os processos do Santo Ofício depositados no Tombo, em Lisboa, o maior dos quais com cerca de 265 fólios.

Seja como for, o que causa espanto é o silêncio que os historiadores brasileiros guardaram por tanto tempo acerca da rebelião milenarista indígena, conhecida como Santidade. Silêncio injustificável, considerada a disponibilidade de fontes, que aliás contrasta com os historiadores de língua espanhola ou hipanoamericanistas, os quais produziram importantes estudos sobre idolatrias e milenarismos indígenas na América Espanhola, a exemplo do Taqui Ongo, no Peru, ou da seita de Martin Ocelotl no México, para citar apenas dois casos do século XVI.

Passo, em seguida, a tratar da história desta Santidade, uma história muito particular que explica, inclusive, a razão de haver tantos documentos, sobretudo os inquisitoriais, a seu respeito.

Ela surgiu na década de 1580, em Jaguaripe, ao sul do recôncavo baiano, como já disse, e  provocou a maior rebelião indígena ocorrida no Brasil português do primeiro século. Era liderada por um índio chamado Antônio, nome de batismo dado pelos jesuítas no tempo em que Antônio viveu num aldeamento de Ilhéus, onde aprendeu rudimentos da fé católica, antes de fugir dali. Cerca de 1584, o grupo de indígenas liderado por Antônio estava já organizado nos "sertões" de Jaguaripe e estimulava fugas e revoltas em toda a capitania. Muitos engenhos foram saqueados ou incendiados, como o do Conde de Linhares, e algumas missões foram abandonadas. Inúmeros portugueses foram aprisionados e mortos, o que está registrado inclusive em correspondência do Governador Geral Manuel Teles Barreto, então ocupante do cargo.

Os pregadores da Santidade exortavam os fiéis a fugir dos brancos e a atacá-los, acenando que o triunfo total estava próximo e com ele viria uma nova era de prosperidade e abundância. Os índios não precisariam mais trabalhar porque as flechas caçariam sozinhas no mato e os frutos brotariam da terra sem que ninguém os plantasse. As índias velhas voltariam a ser  jovens e os homens se tornariam imortais. Todos os portugueses seriam mortos ou tornar-se-iam escravos dos mesmos índios que então escravizavam. O triunfo da Santidade equivalia, assim, ao achamento da Terra sem Males, o paraíso Tupi de que falam os etnólogos, cuja busca teria outrora conduzido este grupo para o litoral atlântico da América do Sul.

O crescimento das rebeliões e fugas pôs em pânico o governo e a população de colonos. O governador viu-se então obrigado a tomar providências enérgicas para destruir o movimento, destroçando seu núcleo dos sertões de Jaguaripe. Organizou uma expedição, confiada a Álvaro Rodrigues, que adentrou os "sertões" e chegou a obter algumas vitórias, sem contudo atingir o núcleo dos rebeldes, onde estava o líder Antônio. Foi neste contexto que entrou em cena um novo personagem, talvez o protagonista maior deste enredo: o poderoso senhor de  engenho de Jaguaripe, Fernão Cabral de Taíde, fidalgo natural do Algarve, homem que prestara serviços relevantes à governança e por isso desfrutava da confiança do governador.

Fernão Cabral propôs a Teles Barreto uma estratégia diferente para derrotar os índios. Considerando ser muito difícil, ou mesmo impossível, destroçar o movimento indígena na floresta, sugeriu ao governador que ordenasse o retorno da expedição repressiva, comprometendo-se ele mesmo a enviar uma expedição especial. Uma expedição de tipo diplomático, composta por mamelucos de sua absoluta confiança, os quais deveriam não combater, mas atrair os índios para o litoral. Atraí-los com a promessa de que na sua fazenda todos gozariam de total liberdade: liberdade para os homens possuírem várias mulheres; liberdade de bailar e fumar a seu modo; liberdade de cultuar seus ídolos. Os mamelucos de Fernão Cabral deveriam convencer os índios, na língua que aliás conheciam bem, de que na fazenda de Jaguaripe não haveria padres, nem cativeiro.

O governador concordou. Fez retornar a expedição de Álvaro Rodrigues e autorizou a de Cabral. Liderados por um certo Tomacaúna, braço direito do senhor de Jaguaripe, os mamelucos cumpriram sua missão. Centenas de índios se deslocaram para os domínios de Fernão Cabral, estabelecendo-se em terra escravista na esperança de que ali fosse a sua mitológica "terra onde não se morria jamais".

No entanto, surpreendentemente, Fernão Cabral não destruiu a "seita" como prometera ao governador. Ajudou os índios para que erigissem sua igreja nas proximidades da casa-grande, os quais continuaram reverenciando seu ídolo de pedra; continuaram com seus bailes e fumos; continuaram, enfim, a estimular fugas e rebeliões em toda a capitania, em escala talvez maior do que antes. As terras de Fernão Cabral se transformaram, assim, no palco da grande festa indígena e no principal refúgio de índios cativados ou aldeados na Bahia.

Durante cerca de seis meses a Santidade floresceu no engenho escravista de Jaguaripe, transtornando a população colonial, provocando a ira dos jesuítas e dos demais senhores de engenho da região. Pressionado a de novo intervir, o Governador organizou uma derradeira expedição, esta confiada a Bernaldim Ribeiro, encarregada de destruir a Santidade de vez.

Nem Fernão Cabral, nem tampouco os índios opuseram resistência. A igreja indígena foi queimada, o ídolo e objetos de culto confiscados; a multidão de índios foi reescravizada, devolvida aos antigos senhores ou às missões, sendo os principais líderes aprisionados e talvez desterrados, com exceção de Antônio, caraíba-mor, que simplesmente desapareceu sem deixar rastro. Isto se passou em 1585.

Anos depois, em 1591, a Inquisição de Lisboa enviaria seu primeiro visitador ao Brasil, Heitor Furtado de Mendonça, que permaneceu na Bahia até 1593. Foi então que o mesmo Fernão Cabral, que se havia reconciliado com o antigo governador Teles Barreto, viu-se flagelado por infinidade de denúncias contra o seu comportamento naqueles episódios. Ele e os mamelucos a seu serviço, a começar por Tomacaúna. Fernão Cabral foi preso e processado pela Inquisição, bem como seus acólitos mais próximos.

Resulta disso, na verdade, a numerosa documentação sobre a Santidade de Jaguaripe, material de grande valor histórico e etnográfico, capaz de iluminar não só a trajetória da Santidade como sua morfologia, a estrutura de seus ritos e crenças e mesmo a maneira pela qual os colonos se relacionaram com a religiosidade rebelde dos índios.

Não é o caso, por falta de tempo, de aprofundar este assunto nos limites de uma comunicação. Mas vale ao menos dar uma notícia do que constitui o melhor exemplo da religiosidade indígena e da mestiçagem cultural que operava na colônia neste primeiro século.

Como tenho dito até aqui, e comparando as fontes inquisitoriais com os cronistas, relatos jesuíticos e com as informações da bibliografia etnológica, é certo que as crenças da Santidade se ancoravam nas mais antigas e profundas tradições dos índios Tupi. A terra de que falavam os pregadores rebeldes, terra de fartura e eterna juventude, lembra muitíssimo o mito da Terra sem Males, por muitos analisada. Uma espécie de paraíso indígena habitada pelos espíritos dos ancestrais onde tudo era abundante: a comida, a bebida, a força. A terra sem Males era o abrigo dos deuses: homens-deuses, como deles diria Serge Gruzinsky. Era o abrigo dos guerreiros invencíveis, demiurgos que não morriam jamais.

A figura do chefe da Santidade reforçava, com seus múltiplos papéis e personas, a conexão entre rebelião e mito. Antônio dizia ser a encarnação viva do maior herói da mitologia Tupi, ou seja, Tamandaré, personagem que teria escapado do antigo dilúvio metido no alto da mais alta palmeira. Antônio não era, pois, apenas um chefe de rebeldes. Era um deus: homem-deus.

Por outro lado, diversos ritos praticados na Santidade eram os que cronistas e jesuítas descreviam desde meados do século XVI. É o caso dos bailes em que os índios se comunicavam com os mortos, danças que certa vez chamei de "o baile dos espíritos". É o caso da utilização de cabaças mágicas, chamadas por eles de maracás, objetos que tinham o poder de abrigar os parentes mortos e fazê-los falar, sempre adornados com plumas e personificados com narizes, bocas, olhos, cabelos. O ídolo da Santidade era de pedra, mas possuía os mesmos caracteres dos tradicionais maracás, chamando-se Tupanasu, quer dizer, Deus Grande. É também o caso do uso do tabaco até o limite da embriaguez ou transe místico, rito essencial para a comunicação com os ancestrais _ tão importante que os portugueses chamaram o tabaco de "erva santa" e a qualificação da cerimônia indígena como "santidade". Era em tais cerimônias que os grandes pajés _ os pajé-açu ou caraíbas _ pregavam a incansável busca da Terra sem Males, fosse pela migração, fosse pela guerra.

Tudo isso, e muito mais de que aqui não me vou ocupar, integrava a religiosidade da Santidade, em boa parte ancorada nas tradições Tupi. Mas, volto a dizer, como no início, a Santidade não permaneceu prisioneira de seus próprios mitos. No limite, esboçou uma mensagem de resistência, absorvendo a história para negá-la. Preconizou a morte ou escravização dos portugueses, a abolição do cativeiro indígena e a destruição da catequese jesuítica.

No entanto, enredada na teia da história que recusava pelo reforço de seus mitos, a Santidade acabaria assimilando traços do catolicismo e do colonialismo por ela combatidos. O chefe do movimento, ao mesmo tempo em que dizia ser o herói Tamandaré, dizia ser também o verdadeiro Papa, e nomeava bispos e santos entre os principais pregadores. São Paulo, São Luiz, eis alguns maiores do clero indígena da Santidade. Sua mulher, ou a principal delas, índia que chegaria a liderar o culto nas terras de Fernão Cabral, tinha por título Santa Maria Mãe de Deus. Verdadeira corte celeste católica era, em suma, o clero da Santidade indígena.

Além disso, enquanto bailavam e fumavam o petim, os índios oravam com os rosários de Nossa Senhora, faziam confissões em cadeiras de um só pau e adoravam cruzes. É verdade que o centro de sua igreja era ocupado pelo ídolo de pedra de que falei, todo adornado, em torno do qual os índios bailavam. Mas à porta da igreja indígena se encontrava uma grande cruz de madeira, verdadeiro cruzeiro que identificava o templo.

A cruz de Cristo à porta da igreja e o ídolo no centro indicam, de fato, as relações de conflito entre as tradições indígenas e o catolicismo inaugurado pela colonização. Mas indicam também a complexa relação dialógica estabelecida entre culturas distintas, relação produzida pelo próprio colonialismo em seu tecido híbrido. E tudo se complicaria ainda mais, se lembrarmos que o ídolo Tupanasu talvez fosse menos indígena do que sugere a língua que lhe dava nome. Tupanasu, deus grande, derivava de Tupã, uma das fórmulas usadas pelos jesuítas para aludir ao deus cristão na língua do outro, a língua que serviu à catequese.

A religiosidade da Santidade foi assim complexa e ambígua. Exprimiu, de um lado, a resistência das tradições indígenas ameaçadas pelo colonialismo e foi, por isso, uma versão brasílica das idolatrias tão frequentes na América Espanhola. Mas exprimiu, por outro lado, a mestiçagem cultural típica da colonização ibérica, e tanto mais quanto alguns brancos e mestiços dela participaram ativamente.


Em conclusão, limito-me a sublinhar três pontos:


1 - Historicamente, a Santidade foi talvez o maior desafio com que se deparou a colonização portuguesa no século XVI, seja por suas ideias, seja por suas ações que, no limite, aguçaram conflitos no próprio seio dos colonos;


2 - A Santidade permite perceber um fenômeno crucial do colonialismo iberoamericano: a incerteza e fluidez das fronteiras culturais, a mescla de tempos e espaços das culturas e conflitos;


3 - A ambiguidade dos papéis jogados pelos atores na cena colonial: os índios tecendo sua resitência sem excluir a cultura dos dominantes e, no extremo, assumindo a própria escravidão como integrante do seu paraíso iminente, ainda que escravidão dos brancos; os colonizadores, por sua vez, pondo-se de joelhos, como fez Fernão Cabral, diante de ídolos indígenas que pretendiam destruir.


A Santidade oferece, por tudo isso, como objeto de investigação, excelente possibilidade de aproximação entre a história e a antropologia. E permite, ainda, comprovar a potencialidade de uma micro-história não somente descritiva, mas preocupada com explicações globais e com as totalidades sociais.