Moisés e o monoteísmo: um estudo sobre a intolerância

Betty Bernardo Fukz

 

Comecemos por uma citação:


"Toda a vez que o homem primitivo tem de estabelecer um tabu, ele teme algum perigo e, não  se pode contestar que um receio generalizado das mulheres  se expressa em todas essas regras de evitação. Talvez este receio se baseie no fato de que a mulher é diferente do homem, eternamente incompreensível e misteriosa, estranha, e portanto, aparentemente hostil. O homem teme ser enfraquecido pela mulher, contaminado por sua feminilidade e, então, mostrar-se ele próprio incapaz (...). Em tudo isso não há nada obsoleto, nada que não permaneça ainda vivo em nós mesmos".

"Utilizando expressões que diferem, apenas, ligeiramente, da terminologia habitual da psicanálise, Crawey, [num estudo sobre o homem primitivo], assinala que cada indivíduo se separa dos demais por um "tabu de isolamento pessoal", e que justamente em suas pequenas diferenças, não obstante a semelhança quanto a todo o resto, se fundamentam os sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria tentador desenvolver essa ideia e derivar desse "narcisismo das pequenas diferenças" a hostilidade que em todos os vínculos humanos observamos lutar com êxito contra os sentimentos de solidariedade e de sobrepujar o mandamento de amar ao seu próximo. A psicanálise acredita que descobriu grande parte do que fundamenta a rejeição narcísica das mulheres pelos  homens, ao chamar a atenção para o complexo de castração e sua influência sobre a opinião, baseada no desprezo, em que são tidas as mulheres".(Freud, 1918, p. 193)

Esta passagem figura em O Tabu da Virgindade (Freud, 1918). Poderia ter escolhido qualquer outro escrito das Obras Completas, como intróito ao tema proposto para esta mesa que leva o título de  Psicanálise e Intolerância. Tal justificativa baseia-se no fato de que a descoberta freudiana tem como fundamento enfrentar a inquietação do outro enquanto mal-estar, a partir da permanência de uma "outra cena" em nós - o Inconsciente. Entretanto, a opção por este texto obedece às seguintes razões:

1) pelo fato de ser a primeira vez em que Freud refere-se à noção de "narcisismo das pequenas diferenças". Em termos normais, o "narcisismo das pequenas diferenças" está na base da constituição do "eu", do "nós" e do outro, na fronteira que tem por função resguardar o narcisismo da unidade. Quando levado ao paroxismo, desemboca na segregação e no racismo, expressões máximas da intolerância ao outro e tolerância ao mesmo. Da hostilidade à mulher, a todos estes fenômenos Freud utilizou a noção de narcisismo das pequenas diferenças para refletir sobre o par de opostos tolerância/intolerância, no plano individual e coletivo. Foi com esta ferramenta conceitual que a psicanálise, diante do fenômeno de manipulação do sentimento de estranheza à diferença do outro que explodiu no interior das grandes massas modernas, se voltou para o campo da política. Ainda que raramente o termo política apareça designado como tal em sua obra, Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 1921), Mal-estar na cultura (Freud, 1930)  Moisés e o monoteísmo (Freud, 1939), testemunham as inquietações de Freud para com a violenta manipulação do fenômeno de intolerância ao outro pelo poder.

2) pela transparência do texto no que concerne ao modo como Freud analisa os acontecimentos de seu tempo, reconhecendo o passado e o presente como cenas conjugadas uma à outra, fora do regime de mútua exclusão e articulando entre si passagens complexas. Entre a escuta clínica e os estudos etnológicos sobre a vida dos selvagens, a escrita de Freud torna-se provocante. Há algo no homem moderno pelo qual ele não consegue se identificar plenamente com a emancipação da mulher ocorrida no decurso do século XIX: um resto pulsional não dominado, isto é, não absorvido pelas malhas da cultura. Portanto, a arte que permitiu Freud construir uma teoria crítica da cultura, foi a de ter se confrontado com a evidência da tensão entre o que pertence à ordem do intemporal - a vida, a morte, as pulsões e as paixões avassaladoras - e o que é da ordem da história de sua época, as incidências sociais e políticas que, inevitavelmente, atingem também o discurso psicanalítico.

3) pelo que a compreensão psicanalítica da hostilidade à feminilidade iluminou o pensamento e a crítica freudiana à política do Nacional-socialismo. O liame entre O tabu da Virgindade e o texto Moisés e o monoteísmo, é o tema do  horror à  diferença do outro. Veremos mais adiante, de que modo esta expressão verbal se concretizou violentamente no contexto histórico dos anos 30 na Viena de Freud, e que efeitos provocou sobre um pensamento que tem como fundamento a escuta da outra cena.

Desde a Primeira Guerra Mundial que Freud, diante da barbárie contida no retorno dos fenômenos de intolerância ao outro que era comum na Idade Média, decidiu  advogar a idéia de que o mal, a destruição e a desumanização dos laços sociais não são  apenas momentos efêmeros da História fadados à superação no futuro. Muito ao contrário: eles expressam os destinos da pulsão de morte, em sua modalidade de pulsão de destruição, sempre sujeitas à incorporação de um elemento radicalmente histórico e social da humanidade. Tal é seu veredicto sobre a amarga vocação humana para "satisfazer no outro a agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, tirar-lhe a posse do patrimônio, humilhá-lo, martirizá-lo e assassiná-lo" (Freud, 1930, 111). O ceticismo freudiano se fará mais presente em sua obra quando do início do trágico final da emancipação do judeus na Europa, embora, jamais, tenha deixado de apostar, por razões éticas e estéticas, na capacidade humana de fazer face ao cunho compulsivo das  pulsões do ato de destruir a  própria espécie e de fortalecer os laços sociais. Convém lembrar aqui que a fórmula da ética da psicanálise "Onde o Isso era, devo Eu advir", figurada pela imagem do trabalho de drenar a embocadura larga das águas do Zuiderzee, é um indicativo desta aposta. (Freud, 1932, 74)

1934. Freud recolhe das cinzas amontoadas sobre as fogueiras de Berlim letras de seus livros que haviam sido queimados por conta de sua condição de judeu. Com elas e por amor a elas começa a elaborar Moisés e o monoteísmo, uma obra que contém vários níveis de entendimento, escrita e publicada em  tempos diferentes.  Os dois primeiros capítulos em Viena, 1937, aproximadamente um ano antes do início da Segunda Guerra; e o terceiro sob os céus de Londres, em 1938.  O recorte sobre o qual vamos nos debruçar liga-se diretamente ao peso e opressão da configuração política dos anos trinta, resumida na seguinte questão que Freud endereçou a Zweig,  "Diante de novas perseguições, pergunto-me, como os judeus se tornaram o que são e por que atraíram para si este ódio inextinguível?" (Freud-Zweig, 1974, 99)   De forma ousada Freud faz do texto uma tentativa de denunciar a estrutura "religiosa" de um Estado laico que, sob o signo do ódio, fomentava, segundo o princípio da luta das raças pela dominação do mundo, a política de tolerância máxima aos idênticos entre si e de  intolerância absoluta ao outro

Moisés traz a marca de uma  ligação entre a história de seu autor e a história da psicanálise: Freud confessa, logo no início, que apesar de pertencer ao povo judeu, fato que torna sua tarefa mais difícil ainda, contestará a origem do homem que este povo celebra como o maior de seus filhos. (Freud, 1939, p. 7): Enunciado traumático. Desidentificar o profeta maior que criou e fundou a religião mosaica, torná-lo um outro, um egípcio, parece ser uma tese bastante insólita. Mas do ponto de vista da história da cultura, ela já havia sido defendida por alguns mestres do Iluminismo, que fizeram de Moisés um Aufklärer (Le Rider, 1992. p. 394). Entre os historiadores de seu tempo, Freud encontrou nos escritos de Ed Meyer apoio inconteste. Tampouco é uma tese totalmente estranha ao corpo doutrinário do judaísmo: no Zohar, Moisés aparece como um egípcio, um homem que fazia revelar o infinito pela escritura diferencial do tetragrama que designa o Nome de Deus - IHVH. Diferentes caminhos levaram Freud a construir sua hipótese. Entre os rastros da palavra Moisés que não se encontram dentro da etmologia hebraica e os passos em direção à sua hipótese sobre a origem do fundador do judaísmo, Freud descobre que Moisés corresponde à palavra mose, termo que se traduz como menino, além de ser  uma  partícula componente do nome de reis egípcios.

Chama atenção o fato de que Freud, para falar de sua época, precisou fazer um longo desvio e evocar uma figura bíblica. Sobre isto podemos aprender algo.  Quando Freud reconhece que a leitura precoce da Bíblia o marcara profundamente, decerto abre a possibilidade de se pensar na interveniência de uma outra lógica que não a greco-latina em seu pensamento. A precedência do nomadismo e da errância sobre a sedentarizaçao e a valorização do estrangeiro em algumas histórias do Antigo Testamento, um dos arquivos da psicanálise, traduzem a exigência de estrangereidade (étrangeté) dos velhos escribas hebreus. Fazer de Moisés um estrangeiro, um egípcio, está, perfeitamente de acordo com o ethos bíblico: Abrão, o patriarca do povo hebreu, palavra que se traduz como "o migrante", Ruth, a moabita, a matriarca da realeza judaica, traduzem a presença insistente da figura do estrangeiro nas histórias bíblicas (Fuks, 2000, p. 85-90).

Estrangeiro para si mesmo. Moisés, o egípcio, inventa o judeu; então todo judeu é um egípcio, isto é, está para além da raça, do sangue, do nominalismo da identidade. Ou seja, a afirmativa freudiana, "Moisés, um egípcio", testemunha contra a ideia, largamente usada e propagada, de uma significação fixa e imutável da identidade. E aqui, o conceito de judeidade - o modo como alguém se afirma judeu subjetivamente, mesmo quando afastado inteiramente da religião, ilumina, com cores fortes, a desapropriação freudiana da  figura maior do judaísmo.  Se  judeidade significa, como faz notar Derrida (1995, 159), uma maneira de tornar-se outro, então  o Moisés freudiano se inscreve como oposição absoluta à ideologia racista do nazismo que fortaleceu fundamentos ao totalitarismo alemão. A judeidade é o antítipo, por excelência, do mito ariano da raça pura. Este mito assegurava uma  identidade linear, concreta e sem rupturas - conforme a leitura de Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy em O Mito Nazista (2002, p. 53), ao povo alemão. O mito nazista, segundo estes dois filósofos, foi utilizado justamente como dispositivo para implantar um corpo social unido com base em uma identificação mimética a um modelo de identidade ideal. Na contracorrente deste mimetismo, a judeidade se apresentava como expressão de uma errância milenar, de uma alteridade multiplicada, fragmentada em estilhaços pelos cortes significantes do que ela própria esconde.  Por isto foi usada como uma das peças-chave que forjou a  existência do  "outro", como negatividade mesma da identidade, marcada pelo sangue e solo arianos: o Judeu.

Poderia, neste momento, abrir espaço para refletir sobre o peso e a importância da criação do método clínico psicanalítico, cuja tarefa é a de levar o sujeito à experiência de exilar-se de si mesmo, desconstruindo paulatinamente a própria idolatria (narcisismo do eu e mandatos superegoicos), para encontrar o que há de mais estranho a ele próprio, a alteridade radical do inconsciente; no momento em que a política de construção da identidade ideal começava a impedir ao sujeito ser sujeito de seu próprio devir e a deixar explícito o que, no só depois da decisão pela Solução final foi possível apreender: o mais além do desejo de segregar, a vontade insana de exterminar o outro. Aspiração que viria a se  realizar  amplamente nos campos de extermínio, inundando de sangue a civilização e que hoje encontra eco nas proezas ditas científicas de fertilização, atreladas à prática de diagnósticos de pré-implantação de óvulos fundamentada em leis da genética - a eugenia, filha legítima da submissão da ciência ao nazismo e de sua participação no empreendimento que exterminou milhares de judeus, ciganos, homossexuais e doentes mentais. Estas questões, que certamente abririam discussões fecundas, permanecerão apenas tangencialmente, dado o espaço de tempo reservado a esta apresentação.

Voltemos a Moisés e o monoteísmo: à desnaturalizaçao da figura de Moisés, segue-se a tentativa de refletir sobre a lógica da intolerância como expressão de uma vontade de assegurar a coesão do idêntico a Si, que destroi tudo o que se opõe a essa proeminência absoluta. Compreender o ódio ao outro através da metáfora do Judeu, o ancestral unheimlich das massas, exigiu usar o conceito de "narcisismo das pequenas diferenças." Os judeus, diz Freud, não são, em princípio, fundamentalmente diferentes dos povos que os acolhem, mas o que é espantoso é que a intolerância das massas se exterioriza com muita intensidade frente às  pequenas diferenças do que frente a diferenças fundamentais.("?) (Freud, 1939, p. 87)  Ou seja, a segregação e o racismo situam-se na dimensão agressiva do sujeito frente à pequena diferença que provoca angústia. Diferença ex-tima: o horror ao que é mais íntimo e que, tomado pelo eu como um objeto externo, constitui-se em objeto do ódio na segregação e no extermínio. No contexto dessa interpretação, o discurso do Führer alemão é exemplar, pois permite perceber com clareza que o judeu era, a um só tempo, o que ele guardava de mais íntimo e o que lhe era mais estranho: um estranho estrangeiro. "O judeu habita em nós; porém, é mais fácil combatê-lo sob sua forma corporal do que sob a forma de um demônio invisível", confidenciou  certa vez Adolph Hitler a Herman Rausching, (Zaloszcyc, 1993)

A História nos mostrou o poder desta crença: despertou e mobilizou a massa.  Depois de capturada pelas malhas fascinantes dos jogos identificatórios com o seu líder os indivíduos identificaram-se entre si e dirigiram a hostilidade e o ódio intra-grupal ao outro. O anti-semitismo atinge o clímax quando Hitler, depois de ocupar o lugar vazio constitutivo da cultura, tornando-se uma espécie de "líder divino" e amparado pela fidelidade incondicional dos idênticos a si mesmo, conseguiu assentar seu programa político de reduzir o outro a um corpo indistinto. Este destino pulsional do político legitimado pela negação da existência do outro, ao ponto de identificá-lo a um verme ou a um vírus portador de infecção, dominou o totalitarismo alemão, tal como hoje o conhecemos.

Resta ainda examinar as diferenças irredutíveis que serviram à criação do "inimigo objetivo" do Nacional-socialismo, nos termos de Hannah Arendt, conceito que se aproxima da concepção de "narcisismo das pequenas diferenças", ainda que dele se diferencie por razões de enfoque. Desde o final do século XIX, a imagem do pênis circunciso, considerado como alterado, danificado ou incompleto esteve no centro da definição de judeu. Fantasias que giravam em torno da ideia de que a circuncisão era um processo de feminização do varão judeu, deixando seu órgão sexual degenerado e altamente comprometido com as doenças sexualmente transmissíveis. O pânico da feminizaçao que atingia a cultura europeia recaía, também, sobre outra figura de alteridade, a feminilidade. Em Mein Kampf,  horror à feminização, tornou-se a retórica do programa político. A literalidade da escrita de Hitler é impressionante: "a mulher introduz o pecado no mundo sendo, então, a principal causa da poluição do sangue nórdico", escreveu Hitler (Le Rider, p. 292).

Já foi dito que a intolerância à mulher e ao judeu ocupa um lugar especial no pensamento psicanalítico. Freud estabeleceu uma homologia entre a impressão inquietante causada pelo sexo da mulher e a vivência sinistra diante da circuncisão.  Ambas provocam um horror determinado, o horror à castração. E quando, em psicanálise, fala-se em horror à castração, está-se falando sobre a angústia que a diferença causa. É esta angústia que Freud afirmava ser a raiz comum entre o antifeminismo e o anti-semitismo. Porque lembra a ausência ou a privação e desperta estranheza, a circuncisão faz com que, diante dela, o incircunciso se depare com a falência do ideal de uma virilidade sem perdas. Certamente uma ameaça ao projeto totalitário alemão, que igualmente via na situação histórica da diáspora judaica, a vivência contínua de deslocamentos geográficos,  um sinal extremamente negativo.

Um outro traço provocador do ódio milenar ao judeu ressaltado por Freud é, justamente, a convicção de seu povo em se dizer primogênito e eleito de Deus. Esta fantasia de eleição induzida estrategicamente por Moisés, o egípcio, possui tal potência, diz Freud, que é compartilhada, embora pela via da inveja e do ciúme doentios, até pelos não-judeus. O discurso de Hitler não desmente esta percepção. "Não pode haver dois povos eleitos", pronuncia o Führer, "somos nós o povo de Deus". (Le Rider, 1992, p. 292) Eis a rivalidade imaginária que tomou corpo no nazismo desde o seu início até a Solução Final (o extermínio).

Finalmente, entre as diferenças que fazem do judeu o estrangeiro do outro, Freud considera primordial, a partir da leitura do mito que construiu em Totem e tabu sobre a origem da cultura, um traço inscrito na própria estrutura da religião judaica e que a desqualificou sumariamente como religião universal: o não reconhecimento da falta originária, do assassinato do Pai. O mito da horda primitiva - o mito do pai gozador que, por conta de sua morte (infligida pelos filhos), e apenas desta forma, se tornou quem instaurou uma nova ordem cultural e passou a regular o gozo. A falta de um ritual deste mito e a recusa dos judeus de conferir à religião a função de produzir ilusões conciliatórias sobre a vida e a morte -, tornam o judaísmo uma religião inquietante e pouco tolerável (Freud, p. 1982, p. 4). No judaísmo, o lugar vazio do Pai morto, sempre garantido enquanto tal pelo interdito da representação de Deus, provoca e alimenta a intolerância e ressentimento dos que se aliviaram do trauma original - a culpa resultante do assassinato - oferecendo o filho de Deus como vítima expiatória.

Porque teria sido impossível para o povo judeu admitir ter matado Deus?

Esta questão, sobre a qual Freud sabe ter lançado pouca luz, é deixada em aberto, embora ele tenha feito esforços em respondê-la apoiado nas pesquisas do historiador e exegeta Sellin, que encontrou na passagem bíblica de Oséias elementos para interpretar o assassinato de Moisés. Por outro lado, o próprio trabalho de leitura à letra do livro do Êxodo, levou Freud à construção do assassinato que se tornou no corpus da teoria psicanalítica, o terceiro mito do assassinato do pai. É verdade que ele chega a reconhecer a fragilidade da hipótese de Moisés ter sido assassinado por seu povo, numa rebelião contra as exigências e proibições que deixava cair sobre todos o peso de suas leis, sem opções de satisfação. Entretanto, levou este projeto adiante, pois significava uma chance de refletir sobre a diferença da formação grupal judaica em relação às grandes massas modernas que encenam diretamente o modelo da horda, do assassinato e do amor ao Pai. Um exame mais atento sugere um outro nível de entendimento e permite avaliar melhor o intolerável - a falta de representação do assassinato.

Convidemos o pensamento de Lacan para iluminar o enigma. Moisés, o egípcio, inventa, segundo suas observações no ensaio "A morte de Deus" (Lacan, 1986, 205-218), a concepção de um Deus cuja presença define-se por uma ausência radical e absoluta e uma ética de superação das idolatrias. Uma ética iconoclasta.  Eis o paradoxo da religião de Moisés, o estrangeiro. Longe de fornecer resposta apenas ao desamparo, reenvia o sujeito ao eco de sua própria voz. Assim explica-se, de resto, porque Lacan propõe que a especificidade de IHVH é designar-se como essencialmente Outro; o que lhe permitiu criar o aforisma. "A verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto; a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente" (Lacan, 1993, 32-33). Dito de outro modo, a questão que a religião de Moisés põe é a da impossibilidade da presença figurada na ideia de um Deus feito de nada.

Numa outra ponta o pensamento de Lévinas presta-se também à escuta desta diferença inextricável. A ideia de Deus para além do ser é o ateísmo mais vigilante, senão o mais desesperado: a própria inscrição do nome de Deus - o tetragrama impronunciável e indizível, IHVH, seria a própria inscrição originária da diferença.   Este Deus que se apresenta no futuro -  "Eu serei o que serei"  - e não admite imagem,  fez os homens à sua própria imagem e semelhança. Esta antinomia - identificação à ausência de imagem - estabelece na tradição que o homem é também irredutível a qualquer representação fixa e imutável (Levítico, 19:2).

Os pensamentos de Lacan e de Lévinas certamente não esgotam a questão que  Freud deixou em aberto, mas indicam alguns caminhos que permitem estabelecer de que modo os nazistas absorveram a formação da Alteridade para o povo judeu. Podemos extrair uma primeira resposta à questão, a partir da própria ideia de Hitler de que era essencial revelar "que o Judeu não é simplesmente uma raça ruim, um tipo defeituoso: ele é o antítipo, o bastardo por excelência. O Judeu  não possui forma ou figura da alma (Seelengestalt). (...) O Judeu não é o antípoda do Germânico, mas sua contradição, o que sem dúvida quer dizer que não se trata de um tipo oposto, mas da ausência mesmo de tipo" (Lacoue-Labarthe&Nancy. 2002, p.53). Ou seja, a proibição mosaica de construir imagens causa assombramento, do mesmo modo que o corpo do judeu circuncidado. O Judeu é ausência de imagem sendo, portanto, uma ameaça real à obsessão de figuração que alimentava o sonho alemão de erigir uma figura e de produzir, sobre este modelo, um tipo da humanidade (idem, p. 80).

As referências feitas ao longo dos três ensaios de Moisés ao judaísmo, e o  destaque que Freud dá ao registro da linguagem em oposição ao da imagem, apontam para o quanto a ética e a tradição religiosa judaica assombravam o Ocidente, em particular aos nazistas, que alimentavam ódios profundos e assassinos contra aqueles que inventaram a presença da Ausência. As mesmas passagens deste hipertexto  autorizam a leitura de que Freud, servindo-se da história bíblica para fundamentar uma concepção de transmissão descontínua de ruptura e reversões entre o passado e o futuro,  efetua a crítica psicanalítica à visão de mundo nazista de que sangue e solo determinam a  origem do indivíduo.

Ao convocar as letras da Escritura à tarefa de pensar o presente - a intolerância mortífera do Estado laico -, Freud está, como já o dissemos, totalmente implicado no acontecimento da interpretação. Em seu êxodo renovado do Egito/Viena à Palestina/Londres, responde produtivamente à dor e ao luto trazidos pelo evento nazista.  Renova a teoria, constrói texto, convoca palavras, reinscreve traços, corta letras, dá corpo aos brancos de um pergaminho de tempos imemoriais e ressignifica genialmente o Livro dos livros, impulsionado a dominar a pulsão de morte, lá onde a palavra mata a Coisa. Entre o real da segregação e o fardo ético da sobrevivência, Freud se serve da escrita para contar a experiência do que é ocupar este lugar estranho-familiar de excluído, atravessando as ideias e pensamentos como os nômades atravessam o deserto. E talvez seja deste gesto que em última instância significou tornar a psicanálise mais forte que a destruição e de seu  desejo expresso a colegas de no exílio pedir licença para dar continuidade à transmissão de um método e teoria voltados à escuta do Outro, que possamos esboçar uma definição psicanalítica de tolerância, sem abrir mão do conceito  psicanalítico de  "narcisismo das pequenas diferenças".

. Se isto significa admitir a existência inextinguível do conflito tolerância/intolerância, então, podemos definir a tolerância como o ato de: a) admitir nossa própria intolerância frente ao estranho; b) aceitar-se estrangeiro para si mesmo e pagar o preço da  própria singularidade; c) saber ocupar o lugar de estrangeiro para o outro que nos vê como encarnação da ameaça de morte e como portador da mais radical ajuda, ou seja, encarnar o Nebenmensch freudiano; d) reconhecer e acolher o inesperado, o de fora,  o estrangeiro, o que escapa ao espelho, o para além do idêntico, sobretudo sem pretensões ao proselitismo; e) saber que a tolerância diante do intolerável - o assassinato do outro - termina sempre em catástrofe.

É neste ponto que a atualidade de Moisés e o monoteísmo se faz exemplar. O texto oferece ferramentas à  psicanálise e às outras disciplinas  para enfrentar os traumas da contemporaneidade que se seguem aos totalitarismos políticos do século XX, a saber: os três fundamentalismos, judaico, islâmico e cristão, cada qual avidamente disposto a exterminar o outro. Por outro lado, embora escrito antes da metade do século passado,  permite uma leitura insólita sobre os fenômenos da contemporaneidade que, na pretensão de esgotar a intolerância,  podem ser igualmente coniventes para com ela. Por exemplo: o movimento nascido da necessidade de tolerância a todas as diferenças, o politicamente correto, contrário ao racismo e ao fascismo, está a ponto de se tornar uma nova modalidade de fundamentalismo (Eco, 2000, p. 16). Uma alma pura de caráter ilibado, formatada por determinados comportamentos e regras do uso de linguagem adequados a situações inesperadas do cotidiano, encerram o sujeito numa rede ritualística e mimética, capaz de torná-lo igualmente intolerante para com o outro que não se submete aos ditames politicamente correto. Estas são algumas das lições que podemos extrair de  Moisés, o estrangeiro, figura que representa, a um só tempo, o homem bíblico e  Freud, o homem moderno.


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