Sara Susan Markuschower


Esta pesquisa pretende investigar, a partir de uma perspectiva psicanalítica, o sentido da persistência do estrangeiro em manter certas marcas identificatórias, que remetem às suas origens. O estrangeiro, aquele que abandona seu lugar de origem e procura a realização de um sonho num outro, sofre a perda do universo primordial da sua existência, onde se constituíram as suas primeiras e mais determinantes identificações.

A manutenção e a sustentação de pequenos traços diferenciais, como p. ex. sotaque, hábitos de vestimenta, proximidade habitacional dos compatriotas, até mesmo, frequentemente, ocupações profissionais iguais ou complementares entre pessoas da mesma origem indicam uma necessidade do imigrante de reproduzir e reconfirmar o vínculo com suas origens.

Neste caso, não se trata da intolerância do habitante original em relação  ao estrangeiro, mas da necessidade psíquica do estrangeiro em manter traços identificatórios diferenciais que referem a sua origem. Estas características remanescentes podem indicar uma resistência por parte do estrangeiro a integrar-se numa nova comunidade sem que barreiras sociais impeçam que faça parte do novo grupo social. Consequentemente, percebemos que quando lidamos com a integração de estrangeiros numa nova comunidade, não apenas lidamos com a acepção e tolerância dos integrantes originais deste grupo, mas também com a resistência dos ingressantes para aceitar e absorver as especificidades do novo grupo social.  Ambos se observam como estranhos e se tratam como tal. As afirmações de Freud a respeito dos conflitos entre estranhos vão ao encontro desta observação:


"Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem tem de tratar podemos identificar a expressão de amor a si mesmo, do narcisismo. Esse amor a si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo e

comporta-se como se a ocorrência de qualquer divergência de suas próprias linhas específicas de desenvolvimento envolvesse uma crítica delas e uma exigência de sua alteração".  (Psicologia de grupo e analise de Eu, 1921)


A necessidade de manter uma certa distância do outro, do diferente, deve-se a mecanismos psíquicos que vinculam o sujeito aos objetos primários de identificação, evitando desta forma a ambivalência a respeito de suas próprias convicções porque é no encontro com o outro, o diferente, que as noções de estrangeiro, estranho, próximo, outro e a própria estranheza devem ser re-significados pelo sujeito.


A noção de estrangeiro nos é conhecida desde a antiguidade. O estrangeiro representa uma posição exemplar nas várias modalidades que circundam as práticas de tolerância e intolerância realizadas pelos povos. Entretanto essas medidas sempre visavam e continuam visando regular o horror e o ódio que o outro, o diferente, suscita. Catarina Koltai lembra no seu livro ‘O estrangeiro' (2000) que Freud no artigo "O mal-estar na civilização" (1929)  enfatiza a idéia de que a fraternidade está fundada sobre a segregação e o amor do semelhante no ódio do diferente. A essência do conflito do homem com o outro atravessa tanto o processo civilizatório quanto o desenvolvimento individual, fazendo com que o estranho que o sujeito quer eliminar se transforme no estrangeiro que precisa ser eliminado socialmente ou que, na tradução lacaniana, é formulada pela ideia de que o homem mantém com seu próximo a mesma relação de ódio que sustenta consigo mesmo. Julia Kristava formula essa ideia da seguinte forma:


"viver com o outro, com o estrangeiro, confronta-nos com a possibilidade ou não de ser um outro. Não se trata simplesmente no sentido humanista, de nossa aptidão em aceitar o outro, mas de estar em seu lugar - o que equivale a pensar sobre si e a se fazer outro para si mesmo".


Podemos supor que na ocasião do encontro do estrangeiro/imigrante

com seu hospedeiro encontramos em ambos resistências em aceitar a alteridade

do outro. Entretanto, as posições de cada um são opostas, no sentido de que o hospedeiro, apoiado na estrutura de suas identificações, pode aceitar a alteridade do outro sem abandonar sua filiação; o estrangeiro, além desta aceitação terá que afastar-se da sua filiação original e abrir-se para a nova cultura. Este processo é facilmente observável na aquisição do idioma, que implica na absorção e apropriação de um outro universo cultural e histórico e, para que esta aquisição possa ocorrer com algum êxito, exige-se um certo afastamento da filiação original. Este novo pedido de filiação, metaforizada pela aquisição da língua, resulta num conflito que não pode ser resolvido, como afirma C. Caligaris no prefácio do livro Imigrantes do Ch. Melman, pelo simples esquecimento da própria especificidade e

pela sedução da nova cultura. Desta forma transformaria o esforço de integração  numa espécie de caricatura. Devido a vinculação às identificações primárias uma substituição completa de uma filiação para outra não seria possível nem desejável, porque implicaria na renúncia da autenticidade do sujeito.

No processo de integração o sujeito cria um espaço, um mosaico, no qual os elementos que fazem parte das filiações e identificações do seu percurso se misturam e vão compondo uma nova imagem, na qual as conquistas e perdas, os lutos e alegrias são rearranjados. Dependendo do contexto histórico social no qual o sujeito está inserido, este mosaico criado pode ser parcialmente compartilhado com integrantes da comunidade original, mas na essência deste amálgama encontramos as elaborações, afortunadas ou não, desta trajetória singular do sujeito, atravessada pelo conflito de sua pertinência. A vivência da duplicidade das culturas e sociedades, que vão ocupar as referências internas do estrangeiro, é descrita por Tzvetan Todorov ao retornar a seu país natal, a Bulgária, após ter vivido 18 anos exilado na França, da seguinte forma:


"Assim que cheguei à França, em 1963, era um estrangeiro no seio da sociedade

francesa, que apenas se tornou familiar a mim progressivamente; vivi, em meu contato com ela, não um salto bruto, mas uma passagem imperceptível, da posição de outsider para insider. Um dia tive que admitir que não era mais um estrangeiro, ao menos não no mesmo sentido de antes. Minha segunda língua foi instalada no lugar da primeira sem choque, sem violência, ao longo dos anos. Mas é exatamente o contrário que acontece por ocasião do retorno do exilado. De um dia para o outro ele descobre ter uma vida interior de duas culturas, de duas sociedades. Bastou-me apenas encontrar-me em Sofia para que tudo me parecesse imediatamente familiar; eu economizava os processos de adaptação preliminares. Não me sentia menos à vontade em búlgaro do que em francês e tinha o sentimento de pertencer às duas culturas".


Ainda a respeito dessa vivência, Todorov refere-se à opinião do coronel Lawrence "da Arábia", que afirmava que todo homem que pertence realmente a duas culturas perde a alma. Pela intensidade dessa experiência Todorov acredita que para estar à vontade em uma cultura, numerosos anos de aprendizagem são necessários e que a duração limitada da vida humana nos impede de ir além de duas ou três experiências.

A capacidade de sustentar esse diálogo interior que se criará na vivência daquele que absorve outra cultura é limitada tanto pela questão de tempo quanto pela incapacidade do homem de suportar uma Babel interna e os seus correspondentes lutos, pois, como diz Freud em "Luto e Melancolia" (1915), a perda da Pátria corresponde à perda de um ser querido, exigindo assim um trabalho de luto.

Desde a sua fundação até os dias atuais, a sociedade brasileira encontra suas bases de organização social na imigração de pessoas de diversos países. A produção social e cultural do país sustenta-se nas influências dos imigrantes dos diversos cantos do mundo. Neste sentido, a sociedade brasileira, como uma sociedade multicultural, apresenta uma problemática que não se restringe apenas a esta, mas atinge praticamente todas as sociedades contemporâneas. Julia Kristeva se pergunta se, diante de uma integração econômica e política na escala do planeta, poderemos viver intimamente, subjetivamente, com os outros, viver os outros, sem ostracismo, mas também sem nivelamento. E acrescenta que a modificação da condição dos estrangeiros, que atualmente se impõe, leva a refletir sobre a nossa capacidade de aceitar novas formas de alteridade.

Os conflitos oriundos da problemática multicultural nas sociedades contemporâneas demandam a criação de uma nova ética, que possibilitará a convivência mais pacífica de pessoas de raças, credos e culturas diferentes. Desta forma a sociedade poderá enriquecer-se cultural e eticamente pela absorção da pluralidade, ao invés de empobrecer-se pela repressão das diferenças. A história dos povos mostra que esta ética não faz parte da essência ou da natureza do ser humano, mas deveria tornar-se uma conquista dos tempos modernos. Em 1929, Freud, ao final do livro "Mal-estar na civilização", já se pergunta se as sociedades civilizadas serão capazes de dominar a natureza destrutiva do homem. Logo na sequência, os acontecimentos históricos demonstraram que estas se encontravam efetivamente bem afastadas desse ideal. Ao acompanhar as pulsações da atualidade em relação a essa questão, sua inflamabilidade acompanhada pela irracionalidade, não apenas demonstra que a capacidade destrutiva, sustentada pelos avanços tecnológicos, aumentou significativamente, mas também que os esforços para controlá-la continuam produzindo uma camada ultrafina de cultura, bem parecida com aquela que existia na Europa de 1929, que na época, inclusive, enganou muitos a respeito da inimaginável destrutividade por vir.

A surpreendente facilidade com que essa camada de cultura evapora demonstra sua fragilidade, e expõe a crueldade e intolerância absurdas que podem existir entre os homens, cuja compreensão ultrapassa a razão, remetendo diretamente à descoberta freudiana a respeito da natureza destrutiva do homem em relação ao seu próximo. Freud afirma a respeito dessa questão o seguinte, no Mal-estar na civilização (1929): "...é que os homens não são criaturas que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve se levar em conta uma poderosa quota de agressividade." E um pouco mais adiante afirma: "Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho".

E afirma ainda em seguida: "....o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem".


Todorov sugere que aprender a conviver com os outros e ser obrigado a falar com seres diferentes levará cada um a não se tomar muito como o centro do universo, e dessa forma poderá injetar certa dose de tolerância, enriquecendo seu espírito. Também Sérgio Paulo Rouanet no artigo "O Eros das diferenças", de 2003, dedicado à criação desse Laboratório da Intolerância, enfatiza o papel da educação na neutralização da intolerância intrínseca ao homem frente ao outro. A aprendizagem de outras culturas e religiões, e de línguas estrangeiras, aproximaria o outro e poderia abrir a possibilidade de criar uma ética de reconhecimento mútuo e de interpenetração, ao invés de uma ética que visa a tolerância de um em relação ao outro.

O filme "Isso, aquilo e aquilo outro", sob direção da Miriam Chnaiderman, que será exibido hoje, no fim da tarde, e que faz parte do projeto ‘São Paulo, educando pela diferença para a igualdade', visa demonstrar como, através da sensibilização para a temática racial, pretende-se a compreensão e a reflexão dos processos discriminatórios.

A partir dessas reflexões, ‘A difícil tarefa de tolerar o estranho', tema da minha pesquisa, ao longo do trajeto percorrido até agora, se desdobra em duas vertentes. Por um lado, a essência da questão não gira em torna da idéia de tolerância, mas de coexistência e reconhecimento mútuo; por outro, a convivência com a alteridade implica num esforço social intenso, principalmente na educação, para abrir caminho em direção à coexistência das diferenças.



Freud, Sigmund - (1921). Psicologia de Grupo e Análise do Ego. S.E., Rio de

Janeiro: Imago.

- (1929). O Mal-Estar na Civilização. S.E., Rio de Janeiro: Imago.

- (1915). Luto e Melancolia. S.E., Rio de Janeiro: Imago.

Koltai, Catarina -  Política e Psicanálise. O Estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000.

Kristeva, Julia   -   Estrangeiros para nós mesmos; trad. M.C. Carvalho Gomes.

Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

Rouanet, Sergio Paulo - O Eros das Diferenças. Revista Mais. São Paulo, Folha

de São Paulo, 09/02/2003.

Todorov, Tzvetan - O Homem Desenraizado; trad. Christina Cabo. Rio de Janeiro:

Record, 1999.