Todos no mesmo barco!
Kabengele Munanga
A questão da diversidade e do reconhecimento da diferença faz parte da pauta de discussão de todos os países do mundo, mesmo daqueles que antigamente se consideravam como monoculturais. As velhas migrações e o tráfico negreiro juntaram num mesmo território geográfico descendentes de povos, etnias e culturas diversas. Há cerca de meio século, os fenômenos pós-coloniais provocam novas ondas migratórias dos países pobres em desenvolvimento, principalmente africanos, em direção aos países ricos desenvolvidos da Europa e da América. Tanto as antigas migrações combinadas com o tráfico negreiro e a colonização dos territórios invadidos, quanto as novas migrações pós-coloniais combinadas com os efeitos perversos da globalização econômica, criam problemas na convivência pacífica entre os diversos e os diferentes.
Entre esses problemas têm-se as práticas racistas, a xenofobia e todos os tipos de intolerâncias, notadamente religiosas. As conseqüências de tudo isso engendram as desigualdades e se caracterizam como negação dos direitos humanos, principalmente o direito de ser ao mesmo tempo diferente e igual. Daí a importância e a urgência em todos os países do mundo em implementar políticas que visam ao respeito e o reconhecimento da diferença, centradas na formação de uma nova cidadania através de uma pedagogia multicultural. Acredito que essa nova pedagogia possa contribuir na construção de uma cultura de paz e no fim das guerras entre deuses, religiões e culturas. Pois bem! Teoricamente a equação parece bem simples. A liberdade de expressão, de movimento, de ir e voltar, etc. são coisas teóricas quando se tratam de grupos e indivíduos humanos, pois as mercadorias incluindo armas mortíferas têm mais direitos de circulação apesar das barreiras alfandegárias e as políticas protecionistas, pois as políticas de imigração de todos os países regulam drasticamente essa liberdade do movimento, de ir e voltar. Além disso, o próprio conceito de direitos humanos não tem o mesmo conteúdo em todos os povos, em todas as culturas e civilizações. Por isso, deve-se evitar a identificação dos direitos humanos com certas formas de organização como o liberalismo econômico, por um lado e afirmar também o direito à liberdade de todos os indivíduos dentro dos limites que nenhum governo ou código jurídico deve franquear e que engloba ao mesmo tempo os direitos culturais e os direitos políticos como a liberdade de escolha e de expressão, por outro lado.
Esta posição está ameaçada tanto por aqueles que reduzem a sociedade ao mercado quanto por aqueles que querem reduzi-la somente em mosaicos comunitários. É importante opor-se com força à colonização cultural e à imposição de um modo de vida dominante ao mundo inteiro, mas é preciso considerar também que o isolamento total das culturas não existe mais. Posição rejeitada por aqueles que pensam que a distância entre certas culturas é tão grande que elas não podem conviver pacificamente. Daí a necessidade de afastar uma da outra em espaços segregados, como foi nos sistemas de apartheid e colonial.
Em vez de opor igualdade e diferença, é preciso combiná-las para poder construir a democracia. É nessa preocupação que se coloca a questão do multiculturalismo, definido como encontro de culturas, ou seja, a existência de conjuntos culturais fortemente constituídos, cuja identidade, especificidade e lógica interna devem ser reconhecidas, mas que não são inteiramente estrangeiras umas às outras, embora diferentes entre elas. No plano político, o reconhecimento da diversidade cultural conduz à proteção das culturas minoritárias, por exemplo, as culturas indígenas da Amazônia e de outras partes do continente americano, que estão em destruição, seja pelas invasões de seus territórios, seja ainda pela criação das reservas onde se acelera a decomposição das sociedades e dos indivíduos.
Nos países da diáspora africana se coloca a mesma questão política do reconhecimento da identidade dos afro-descendentes. O multiculturalismo não poderia reduzir-se a um pluralismo sem limites; deve ser definido, pelo contrário, como a busca de uma comunicação e de uma integração parcial entre os conjuntos culturais de há muito separados ou não reconhecidos na formação da cidadania. A vida de uma sociedade cultural organiza-se em torno de um duplo movimento de emancipação e comunicação. Sem o reconhecimento da diversidade das culturas, a idéia de recomposição do mundo arrisca cair na armadilha de um novo universalismo. Mas sem essa busca de recomposição, a diversidade cultural só pode levar à guerra das culturas. Na medida em que a modernidade se difunde através de formas de modernização muito diversas, impõe-se a idéia de que é preciso tornar possível a comunicação entre as culturas e parar com as guerras dos deuses. No plano jurídico, o reconhecimento das identidades particulares no contexto nacional se configura como uma questão de justiça social e de direitos coletivos e é considerado como um dos aspectos das políticas de ação afirmativa. Na contramão da globalização neoliberal homogeneizadora que quer arrastar todos os povos no mesmo fosso, corre paralelamente em todo o mundo o debate sobre a preservação da diversidade como uma das riquezas da humanidade. A questão fundamental que se coloca em toda parte é como combinar sem conflitos a liberdade individual com o reconhecimento das diferenças culturais e as garantias constitucionais que protegem essa liberdade e essa diferença.
Essa questão leva a uma reflexão complexa que abarca notadamente o político, o jurídico e a educação. É essa questão que está no âmago das polêmicas maniqueístas do bem e do mal que envolvem o debate sobre a ação afirmativa e a obrigatoriedade do multiculturalismo na educação brasileira. É através dessas intermináveis polemicas que pretendo me colocar para mostrar que a defesa da diversidade e da diferença é uma questão vital no processo de construção de uma cidadania duradoura e verdadeira. De acordo com Alain Touraine, nenhuma sociedade moderna aberta às trocas e às mudanças tem unidade cultural completa e que as culturas são construções que se transformam constantemente ao interpretar experiências novas. O que torna artificial a busca de uma essência ou de uma alma nacional, ou ainda a redução de uma cultura a um código de condutas. Nesse sentido, a idéia de que uma sociedade deve ter uma unidade cultural, que esta seja da razão, da religião ou etnia, não se sustenta mais.
*Kabengele Munanga nasceu na República Democrática do Congo, antigo Zaire, em 19 de novembro de 1942. Foi o primeiro antropólogo de seu país, saindo pela primeira vez para fazer mestrado na Bélgica. Chegou ao Brasil por convite de um colega, terminou seu doutorado, retornou ao Congo. Em 1980 veio para o Brasil, para assumir a cadeira de Antropologia na Universidade do Rio Grande do Norte. Depois de um ano muda-se definitivamente para São Paulo, tomando como sua casa a Universidade de São Paulo. Atualmente é professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade e São Paulo e Diretor do Centro de Estudos Africanos da mesma Universidade.