Claudio Eizirik

Boa tarde, queria inicialmente agradecer aos membros do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância.

Eu penso que uma das maneiras de homenagear Freud, nos seus 150 anos, está sendo uma realização de uma quantidade enorme de eventos ao longo de todo este ano, provavelmente em todas as capitais do mundo ocidental, inclusive recentemente tivemos uma reunião na ONU, onde tive a oportunidade de falar exatamente sobre a transmissão intergeracional do ódio, da violência e da guerra, e vou falar um pouco sobre isso.

Pretendo examinar algumas contribuições psicanalíticas para a compreensão da intolerância, da xenofobia e do preconceito.

Como se sabe a palavra xenofobia vem do grego xenos (estranho) e fobia (medo ou rejeição). Medo ou repulsa ao estranho, ao outro, ao estrangeiro, ao desconhecido. Quem é o outro ou a outra a quem tememos? Por que tememos? Como reagimos a esse temor?

A psicanálise, ao contrário do que possa parecer, e às vezes popularmente parece, e muitos lhe exigem, não explica, na verdade Freud não explica nem dá respostas. Seu principal método de investigação, que tem semelhanças com o método talmúdico, consiste em formular perguntas e procurar hipóteses que possam contribuir para estimular novas perguntas, novas reflexões.

Na verdade, como dizia Blanchot, filósofo francês que foi muito citado por Bion, a resposta é a desgraça da pergunta, de modo que penso ser muito mais útil do que dar respostas o método de levantar questões, hipóteses e procurar produzir algum tipo de conhecimento. Portanto, a psicanálise se aproxima dos fenômenos humanos com curiosidade científica e, um certo ceticismo benevolente, conforme sugeria Freud, desconfia das respostas fechadas, simplistas e reducionistas. Sua proposta é contribuir com alguma parcela talvez relevante para enfrentar a crescente complexidade do mundo em que vivemos, e suas estranhas e aparentemente incompreensíveis manifestações.

Sua missão maior é, além das suas inegáveis conquistas terapêuticas de mais de 100 anos, fazer parte da reflexão sobre a cultura, que permite ampliar o pensamento crítico e independente, avesso a qualquer compromisso que não seja a busca das verdades possíveis. Nós não estamos em busca da verdade, mas das verdades possíveis, ainda que fragmentadas, incompletas e provisórias.

Por exemplo, entrando no nosso tema, como pode ocorrer que uma pessoa com nível mínimo, ou talvez razoável, ou até elevado de educação e de conhecimento, possa fazer tranquilamente, sem o menor problema, sem a menor crítica, algumas afirmações como essas: "os árabes são traiçoeiros", "os negros são inferiores", "os judeus são pão duros", "os franceses são porcos", "os alemães são grosseiros", "os argentinos são arrogantes", "os cariocas são preguiçosos", "os baianos são vagabundos", e assim podemos ir indefinidamente. Mas, fala-se muito sempre dessas definições, dessas categorias. O que significa isso: os árabes, os alemães, os negros, os judeus, os homossexuais, os loucos, os homens, as mulheres? Pode haver alguma formulação mais simplista, simplória ou reducionista? Ou será que cada um de nós não conhece judeus perdulários, argentinos modestos, franceses asseados, alemães gentis, árabes confiáveis, negros brilhantes e assim por diante, exatamente o contrário de todas essas afirmativas simplistas e preconceituosas?

O que nos leva a recorrer a esses agrupamentos forçados, a essas semelhanças inexistentes, a essas generalizações ridículas, a esses estereótipos? Sem dúvida, penso que todo este Simpósio está refletindo exatamente sobre esse tema, e pretendo trazer algumas idéias ou hipóteses para aproximar-me dele.

Em primeiro lugar, eu diria que isso nos acalma, nos faz sorrir, nos dá uma sensação de segurança, há pouco nós estávamos rindo dos gaúchos e dos paulistas. Tenho, por sinal um amigo paulista que é especializado em piadas sobre gaúchos, cada vez que me encontra, ele se deleita me contando as piores histórias possíveis sobre gaúchos, e eu naturalmente tenho uma coleção de histórias sobre os paulistas, eu armazeno esperando encontrá-lo; da mesma forma com os argentinos nós temos uma longa história de encontros e desencontros. Isso nos acalma, nos faz sorrir, nos dá uma sensação de segurança, ou seja, primeiro negamos nossa ignorância sobre as outras pessoas e as suas culturas, e em seguida fazemos piadas sobre negros, argentinos, paulistas, homossexuais, judeus e assim por diante. Em terceiro, utilizando o termo freudiano, projetamos nesses grupos sentimentos de insuficiência, ignorância e desconforto. Uma das hipóteses psicanalíticas é que o outro, o estrangeiro, o desconhecido é uma lata de lixo para nossas próprias insuficiências. Freud descreveu com a expressão "narcisismo das pequenas diferenças", a curiosa tendência humana a exagerar as diferenças entre grupos vizinhos ou semelhantes para sentir-se supostamente superior. Essa pseudo-diferença existe entre brasileiros e argentinos, entre alemães e austríacos, entra duas empregadas que trabalham numa mesma casa, entre duas famílias cujos filhos casam, em que naturalmente a outra família é sempre inferior à nossa, e o nosso filho ou filha vai entrar numa fria, unindo-se com um grupo de classe inferior ética, moral e esteticamente - ou pelo menos é assim que imaginamos.

Uma das mais penetrantes análises psicanalíticas sobre a questão da alteridade foi desenvolvida por Freud em seu ensaio sobre o estranho - das Unheimliche - e acho que essa foi uma das perguntas feitas na mesa anterior sobre a questão do estranho que vive dentro de nós. Depois de examinar vários significados do termo em outras línguas, no alemão e estudar o conto O Homem de Areia, de Hoffman, Freud propõe que o estranho seja algo secretamente familiar que foi submetido à repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz a essa condição. Assim, uma experiência estranha ou ocorre quando as lembranças infantis que haviam sido reprimidas revivem cada vez mais por meio de alguma impressão, ou quando crenças primitivas, que haviam sido superadas, voltam a ocupar a mente. Isto é o que Freud descreve como pensamento animista, característico dos homens primitivos.

Essa forma de pensar primitiva povoa o mundo de espíritos assustadores, e decorre do desamparo das crianças e dos homens das cavernas face ao desconhecido, a escuridão, ao silêncio e ao enigma da morte. Uma etapa mais evoluída seria o pensamento religioso, e uma etapa mais evoluída ainda é o pensamento científico. Freud tinha a ilusão de que o pensamento científico acabaria prevalecendo sobre o pensamento religioso e o animista. Basta percorrer as ruas das nossas grandes cidades para ver que tremendo erro de previsão de futuro ele cometeu, pois convivemos com uma multiplicidade e proliferação de toda sorte de seitas e crenças de todos os tipos.

Assim, portanto, face ao estranho, ao outro desconhecido, regredimos ao pensamento animista e passamos a acreditar que essas generalizações do estereótipo descrevem a realidade desses estranhos. Portanto, a xenofobia e o racismo se alimentam dessa forma primitiva de pensar. Supondo que essa hipótese seja útil, e talvez seja, ela nos ajuda a formular as seguintes questões, que talvez já tenham sido discutidas aqui neste encontro: por que tão poucos negros ocupam espaços importantes na sociedade brasileira, de tal maneira que não são proporcionais à percentagem de negros na nossa população? Por que povos com origens comuns, de longas histórias comuns, como israelenses e árabes, mantêm um estado de continuada beligerância? Por que observamos na Europa atual uma onda de preconceitos, rechaços e violências contra os diversos grupos de imigrantes? Como é possível pessoas que usam sua capacidade mental para desenvolver tantas áreas das ciências e das humanidades comportarem-se, no que diz respeito a determinado grupo humano, da mesma maneira que os homens primitivos em relação às sombras das cavernas e ao temor dos espíritos que imaginavam vagarem na escuridão?

Penso que, para entender esse paradoxo, precisamos considerar a presença desses poderosos elementos inconscientes que nos fazem abandonar a razão e ficar à mercê dessas práticas primitivas. Claro que importam os igualmente poderosos fatores culturais, econômicos, sociais e geopolíticos envolvidos, e os grandes interesses dos grandes lucros auferidos em nome da xenofobia e do racismo. Dois filmes, "O Senhor da Guerra" e o "O Jardineiro Fiel", oferecem excelentes exemplos sobre esse conjunto de fatores sociais e econômicos que levam à manutenção desse estado de coisas.

Mas o meu enfoque aqui é um recorte que privilegia a versão psicanalítica, aquela que trata das vastas emoções e dos pensamentos imperfeitos que habitam a nossa mente inconsciente. Para exemplificar com literatura, gostaria de destacar dois livros de Philip Roth: "A Mancha Humana" e "Complô contra a América". Não sei quantos de vocês costumam ler os livros de Philip Roth, mas recomendo fortemente. Jorge Luiz Borges, o grande  escritor argentino, sempre dizia, a cada ano em que não ganhava o Nobel da Literatura, que a Academia Sueca tinha um talento de, a cada ano, revelar um novo escritor que ninguém conhecia. Como partidário de Philip Roth, fico com essa impressão de que surge um novo escritor que eu não conhecia, mas provavelmente seja um preconceito meu. Seja como for, se Philip Roth continuar vivendo nos próximos anos, vai continuar sendo forte candidato a esse prêmio. No primeiro dos livros, "A Mancha Humana", do qual foi feito um filme com Anthony Hopkins e Nicole Kidman, temos a historia de um professor de literatura negro, mas que, por razões genéticas, tinha a pele branca, e que renega a identidade de sua família, se faz passar por judeu. Ele tem uma carreira que impossivelmente teria, se tivesse mantido sua raça. Assim, ele traiu a sua raça, traiu a sua família. A ação do livro se concentra na etapa final da sua vida, e nos eventos que se sucedem a uma acusação de racismo, que ele recebe por ter usado uma palavra ambígua para criticar dois alunos que faltavam à aula, a palavra ‘spook', uma palavra que era usada para dizer negro, mas na verdade é 'ghost', fantasma, pessoa que desapareceu. A partir daí, o professor acaba sendo acusado e paga um alto preço, indiretamente, por sua antiga traição à sua família e à sua raça. O segundo o livro, "Complô contra a América", é uma fantasia sobre o que seria dos Estados Unidos e do mundo caso Charles Lindbergh, o famoso criador e notório anti-semita, tivesse sido eleito presidente dos Estados Unidos e seguido uma política de isolacionismo e implícita aliança ao nazismo. Vocês podem imaginar qual teria sido o cenário do mundo se esse fosse o presidente e não o Roosevelt, que tinha uma política absolutamente democrática e anti-nazista. Aqui Philip Roth narra a vida de uma família de Newark de origem judia, e os eventos da política americana internacional, mostrando como ambos se relacionam, e entremeando racismo e xenofobia, e como formas de pensamento primitivo transtornam e destroem incontáveis vidas humanas.

Também quero destacar os grandes livros de Salman Rushdie, como "Shalimar, O equilibrista" e Amós Oz, escritor israelense. Embora provenham de duas culturas diferentes, o tema do fundamentalismo religioso é examinado com a maestria desses dois grandes escritores. Rushdie, que sofreu perseguição do fundamentalismo islâmico, pensa que as distorções fanáticas podem ser a ameaça imediata, mas crê que em última análise o problema esteja na religião. Para ele, quando ela deixa de ser uma fonte de conforto privado para dizer como devemos levar a nossa vida, desmente seus propósitos de amor e paz, e isso acontece com frequência demais. Amós Oz, refletindo sobre o conflito árabe-israelense, a partir da sua própria experiência como soldado em duas guerras, e de sua longa carreira literária, destaca igualmente o caráter destrutivo dos exageros fanáticos das religiões. Por outro lado, o maestro Daniel Barenboim e o escritor Edward Said, um judeu e o outro palestino, infelizmente o último falecido, estruturaram uma atividade que reúne há alguns anos jovens palestinos e israelenses em torno de uma linguagem que vai além da diferenças: a linguagem musical, estruturando conjuntos que tocam meio a meio, entre palestinos e israelenses, mostrando que é possível estabelecer pontes emocionais que talvez ultrapassem as diferenças e produzam novos sons, os do diálogo e da busca do entendimento do outro.

Nos fundamentalismos, de todas as religiões ou conjuntos de crenças, estão sempre presentes essa exacerbação paranóica da xenofobia e do racismo, e consistem possivelmente hoje nas maiores ameaças à busca do diálogo e reconhecimento do Outro. Quando falo em fundamentalismo, naturalmente é possível, em um primeiro momento, que se pense no fundamentalismo islâmico, mas estou me referindo ao fundamentalismo islâmico, judaico, cristão, neoliberal, budista ou qualquer que seja, não faz nenhuma diferença, todos são iguais porque todos compartilham da mesma base fanática e irracional. Observem como nos fundamentalismos de todas as religiões os líderes e as massas recorrem ao pensamento mágico, simplista, reducionista e dissociado, com pequenas palavras de ordem, em frases feitas repetidas pelas multidões embriagadas pelo ódio e animadas por delírios variados, levando essas multidões ou grupos de jovens a sacrifícios de suas vidas em troca de supostos gozos no reino do outro mundo.

Algumas vezes se ouve dizer que tais pessoas ou grupos se comportam como animais, mas isto é uma grande ofensa aos animais, cujas lutas são biologicamente determinadas pela conquista do território da fêmea ou do alimento. São humanos, demasiadamente humanos, como diria Nietzsche, essas manifestações, e nos desafiam a reconhecer o irracional, o preconceituoso, o racista e o xenófobo, que levamos na nossa mente inconsciente.

Nosso grande desafio, agora que vivemos em uma sociedade democrática e que a informação e o conhecimento são livremente circulantes pela Internet, agora que já sabemos o quanto de mal e destruição somos capazes de causar enquanto espécie humana, o desafio é resistir ao desânimo, ao catastrofismo, à desesperança e ao apelo fácil às soluções violentas igualmente xenófobas ou racistas, ao fascínio dos líderes autocráticos e supostamente fortes, ou daqueles que se movem baseados em visões fundamentalistas do mundo, como testemunhamos nesse momento em diferentes latitudes.

Gostaria agora comentar de algo sobre a reunião que foi realizada na ONU, em que discutiu-se a transmissão inter-geracional do ódio, da violência e da guerra. Uma das coisas mais destacadas foi a importância do processo de crescimento mental ao longo da vida, que se inicia pela qualidade da relação mãe-bebê, a presença da figura materna, da família e da comunidade, que dão o suporte e apóiam a capacidade de pensamento independente e de transformar sentimentos primitivos em expressões de relação civilizada com os outros. Esse processo de desenvolvimento da subjetividade necessita de pelo menos condições adequadas internas e externas, e quando faltam estruturas sociais democráticas e abertas um dano significativo pode ocorrer.

Tratamentos psicanalíticos de vítimas do Holocausto, de ditaduras, de situações de abusos ou de outras expressões da violência, demonstraram como esses eventos traumáticos não são psicologicamente integrados e representados. Existe frequentemente um luto não resolvido e uma incapacidade de simbolizar, e essas deficiências no processo mental podem ser, e frequentemente são, transmitidas de modo a reemergir nas futuras gerações. Existe toda uma literatura, nos últimos anos, de análises feitas de descendentes, tanto de vítimas como de perpetradores do Holocausto e de outras situações de violência, em que tem sido demonstrado como uma primeira geração vive, a segunda geração reprime e na terceira e quarta gerações todos esses conflitos voltam de outra maneira, à tona em busca de respostas e de soluções. A propósito, há um belíssimo filme de Akira Kurosawa que se chama "Sonata de Agosto", em que há três gerações de japoneses. A primeira geração é a da avó que sofreu o trauma das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, a segunda geração é a de seus filhos, e mostra-se a avó sempre vestida com os kimonos japoneses, os filhos absolutamente ocidentalizados e engravatados, tentando ser como os americanos, imitando os americanos em tudo; e os netos, que acabam ficando com a avó e têm uma experiência emocional em que esta avó transmite para a terceira geração aquilo que os pais quiseram reprimir ou negar. É um belo filme, que mostra a função psicológica dos avós, que nas culturas orientais são muito mais valorizadas do que nas culturas ocidentais.

Assim, o papel social, familiar e psicológico dos avós é o de transmitir para as novas gerações um tipo de vivência que nenhum livro, nem filme, podem transmitir, só o contato emocional.

Há uma diferença  entre transmissão intergeracional e transgeracional. A intergeracional diz respeito à transmissão consciente de conteúdo mental no ciclo vital, como identificação de fantasias que são organizadas na história familiar e herdados pela geração subsequente, resultando no efeito estruturador do aparelho mental. Transmissão transgeracional ocorre inconscientemente e são transmitidos às futuras gerações conteúdos mentais que são dissociados e não simbolizados por palavras ou histórias, portanto afetos primitivos e não integrados, resultantes de traumas, dor, perdas, que não são elaborados e não são resolvidos, e esse tipo de transmissão transgeracional permanece encapsulado, agindo tanto como uma violenta reclusão de sentimentos de si mesmo, ou transmitido para as futuras gerações.

Falando sobre um tema que acontece em muitos países, mas não necessariamente no nosso, quando mentiras e más condutas são percebidas numa cultura como valores sancionados, por exemplo, diferentes formas de preconceito manifestado através do racismo, falta de respeito por minorias: mulheres, velhos e imigrantes, isso pode produzir uma transmissão transgeracional, e quando a figura materna é aquela que provê a mentira pode tornar-se impossível desenvolver o aparelho mental, a noção de subjetividade e estabelecer-se valores sociais adequados e o estabelecimento de valores como bom, mau, certo ou errado e assim por diante.

A psicanálise é uma disciplina cujos insights podem nos ajudar a ter uma visão crítica da cultura e de sua saúde mental. Assim, a situação do mundo atual, com áreas dominadas por muita pobreza, guerras étnicas, os fundamentalismos, a violência urbana e outra situações semelhantes, produz traumas e violência que podem somente contribuir para mais ódio e violência às gerações futuras. O que poderíamos fazer para prevenir essa transmissão negativa do ódio?

Penso que uma prevenção efetiva exige uma ação urgente, particularmente dirigida às crianças e famílias onde essas transmissões se manifestam. Sem isso, naturalmente, mais e mais terroristas serão produzidos, e pessoas com tendências ao ódio e à destrutividade. Melhorar as condições básicas de vida: saúde e educação, por meio de maciços investimentos nas áreas pobres do mundo é também uma maneira concreta e essencial de prevenir o ódio, a guerra e a violência.

Penso que é importante destacar o enorme poder destrutivo do comércio de armas, além de uma tentativa, que seria necessária, de regular o poder dos piores excessos da economia de mercado, porque na verdade, com a modificação do mundo, há o desaparecimento de várias grandes áreas de influência. Temos uma economia essencialmente dominada pelo mercado, que dita como as coisas vão se desenvolver. Penso que essa questão do mercado é importante, porque ela tem uma característica absolutamente amoral, que tem apenas o lucro como objetivo.

Sabemos, informados pelo conhecimento analítico, que o estabelecimento de maneiras de reduzir divisões sociais e de projeção do ódio são importantes mecanismos de coesão social. Como é possível encontrar caminhos para a implementação da tarefa de ouvir os outros, quer seja ele desconhecido ou o inimigo? Sob uma perspectiva psicanalítica, compreendemos que o exemplo, esse, da Fundação Said-Barenboim é algo que talvez devesse ser repetido, porque precisamos aprender a produzir e trocar novos sons, diferentes dos sons tradicionais, e é importante também aprender a ouvir sons de culturas diferentes. Quando nós ouvimos sons japoneses, ou sons árabes, ou sons israelenses, ou sons negros, ou sons índios, num primeiro momento podem parecer absolutamente repelentes, porque, como estava sendo dito na mesa anterior, ele vem totalmente ao contrário da nossa experiência emocional, inicial, e talvez o aprendizado da escuta de novos sons seja uma maneira de transformar esse tipo de dissociação que predomina na cultura contemporânea.

Na Associação Psicanalítica Internacional, o objetivo, como naturalmente vocês sabem, é o desenvolvimento de uma disciplina científica e a manutenção do alto padrão de formação psicanalítica. Temos uma tradição de mais de 100 anos de trabalho educacional, coletivo e muito cuidadoso, mas também ultimamente, nos últimos anos, várias comissões foram estabelecidas para dar atenção e desenvolver o nosso pensamento sobre assuntos como: terror, terrorismo, preconceito, anti-semitismo, efeitos psíquicos da exclusão social, desenvolvimento das crianças e dos adolescentes; e temos uma comissão das Nações Unidas que trabalha dentro da ONU e foi quem organizou esse evento comemorativo aos 150 anos. Foi um dia muito emocionante, até eu diria, porque além de eu falar, falou um representante da Cruz Vermelha Internacional e falou uma pesquisadora especializada em Holocausto e sobreviventes. Depois houve uma série de apresentações de casos clínicos e de intervenções em crises, pessoas com experiência de intervenção no conflito árabe-israelense, em questões raciais nas escolas e de uma série de outros contextos em que a busca era sempre de canais de comunicação para o diálogo. Só para dar um exemplo, existe um livro que foi elaborado e que tem três colunas, duas escritas e uma em branco. Esse livro é usado, dentro do possível, por jovens israelenses e palestinos, e é a história do Oriente Médio, mas é a história do Oriente Médio escrita em uma coluna por historiadores palestinos e outra por historiadores israelenses, os fatos, objetivos, as datas, são as mesmas, e cada uma com uma história completamente diferente, e há uma parte em branco para os estudantes colocarem a versão deles, o que eles acham, o que eles construíram a partir da escuta das duas versões. Então aquilo é uma coisa fantástica, porque ler algumas daquelas descrições é estarrecedor. No dia tal de tal aconteceu um atentado terrorista que matou tantos assim, assado, diz um; o outro diz, no dia tal de tal, defendendo os interesses nacionais, foram feitas ações patrióticas; é a mesma história, só que são duas histórias, e o interessante é que é uma tentativa, esse grupo trabalhou junto independentemente, cada um relatando a sua história, mas quem lê isso procura reconstruir a sua versão.

A contribuição psicanalítica dessas comissões é que vários de nossos membros não só estão envolvidos no trabalho da ciência, como trabalham na universidade, na educação, na psicologia, na psiquiatria, em programas de prevenção de saúde mental.

Penso que a contribuição psicanalítica para a prevenção do ódio, da guerra e da violência pode ocorrer de duas maneiras: a primeira pelo tratamento de pacientes cuja transformação psíquica pode produzir também mudanças nas gerações que os sucederem, e na segunda, participando dessas atividades integradas e iniciativas em que é possível mostrar o quanto uma escuta aberta pode corrigir percepções distorcidas e ampliar a capacidade de tolerância e de identificação com os outros.

Um desses comitês chama-se o Comitê do Preconceito. Esse grupo de pessoas tem um relatório muito interessante, em que definem preconceito como podendo ser de dois tipos: o preconceito benigno, que é indispensável e necessário para a construção do aparelho psíquico, na medida em que define preconceito como conceitos prévios, e algum tipo de preconceito todos nós temos; e o que chamam de preconceito maligno, que é quando o preconceito normal, benigno, é invadido pelo ódio e pela intolerância, gerando diferentes tipos de traumas, que podem levar à transformação de um no outro, e isso ocorre principalmente quando, durante o desenvolvimento de uma pessoa, ela vive a experiência de ter uma situação militante, seja ela étnica, religiosa ou nacionalista. Uma parte importante desse relatório diz respeito às questões ligadas ao Holocausto, mas outra parte diz respeito a questões contemporâneas que, por exemplo, aconteceram na Itália recentemente. Há poucos meses aconteceu uma eleição em que um novo presidente foi eleito num regime aparentemente democrático, formalmente democrático, mas um regime no qual a mentira, o embuste, a corrupção e toda uma série de ameaças eram a força predominante. Uma figura neofascista foi eleita democraticamente, e isso é interessante, não importa que as pessoas sejam eleitas democraticamente, como diria Winnicott, a palavra democracia significa o fato de que os eleitores elegem uma pessoa para fazer um jogo, nesse jogo os eleitores vão se comportar como crianças que aceitam que o pai e a mãe governam a casa, desde que o pai e a mãe se comportem como pai e mãe responsáveis. No momento em que o pai e a mãe passam a desobedecer a esse jogo, eles perdem a legitimidade, mesmo que tenham sido eleitos.

Finalmente quero destacar que este trabalho que está sendo feito aqui e em vários outros lugares é uma forma que a psicanálise encontra de contribuir e de se inserir nesse movimento de defesa do pensamento crítico e independente. Ela não é a única, talvez não seja a principal, mas ela é uma das vozes que não pode estar ausente nessa discussão, porque nós todos, os psicanalistas, e penso que todos os presentes, e outros, compartilhamos de uma definição de Freud que me parece que sintetiza o que nós estamos discutindo: "A voz da razão é baixa, é suave, mas ela nunca deixa de tentar ser ouvida, apesar de todas as ameaças que lhe fazem".