Diana Luz Pessoa de Barros


Nos nossos estudos sobre a intolerância linguística, temos procurado diferenciar a intolerância linguística propriamente dita - em relação aos usos linguísticos, às línguas do "outro", ao domínio ou não da escrita - do exame linguístico-discursivo dos discursos intolerantes de qualquer ordem, tal como têm sido feito pelos estudiosos do discurso e do texto. Nesse caso, o objetivo é mostrar como se constroem os discursos intolerantes (racistas, fascistas, separatistas, puristas, etc), que procedimentos e estratégias são usados nessa construção, em que quadro de valores (ou em que formação ideológica) se inserem, e finalmente qual a identidade, o ethos intolerante que se cria nesses discursos.

Apresentam-se neste artigo alguns resultados de uma pesquisa em desenvolvimento sobre os procedimentos de construção dos discursos intolerantes, desenvolvida no âmbito do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância - LEI e com bolsa do CNPq, na perspectiva da semiótica discursiva francesa.

Os objetivos da pesquisa são assim:

a - mostrar como se constroem os discursos intolerantes, quais os procedimentos linguísticos e discursivos usados nessa construção, e em que quadro de valores esses discursos se inserem;

b - construir a identidade, o ethos intolerante, dos enunciadores desses discursos e as identidades específicas dos enunciadores dos discursos com diferentes tipos de intolerância (ethos racista, purista, etc);

c - determinar as diferenças entre os discursos intolerantes no âmbito do público e do privado;

d - mostrar as estratégias de implicitação de conteúdos, que mascaram no discurso certas formas de intolerância consideradas "inaceitáveis" socialmente ou mesmo proibidas, na lei;

e - mostrar, pela contraposição aos discursos intolerantes, como os discursos tolerantes politicamente corretos acabam por explicitar a intolerância;

f - aprimorar uma proposta teórica e metodológica, no âmbito dos estudos da linguagem, para exame dos discursos intolerantes, sem deixar de considerar a necessidade de estudos multidisciplinares;

g - contribuir, na perspectiva dos estudos da linguagem, com os estudos sobre a intolerância nos diferentes campos do conhecimento (história, sociologia, psicologia, etc);

h - contribuir, pela produção de saber sobre a intolerância e seus discursos, para o combate e a diminuição da intolerância em nossa sociedade, e para o crescimento dos discursos tolerantes, no sentido positivo que Bobbio (1992) atribui ao conceito de tolerância.

Para a realização desses objetivos estabelecemos algumas hipóteses de análise semiótica do discurso intolerante, que apresentaremos neste texto: exame narrativo dos discursos intolerantes, para a elaboração da ou das organizações narrativas que caracterizam esses tipos de discursos; exame da modalização e da aspectualização, para a constituição dos percursos passionais dos discursos intolerantes; exame das categorias de pessoa, de tempo e de espaço, para o estabelecimento das relações de aproximação e distanciamento entre o discurso intolerante e as instâncias de sua enunciação, e entre enunciador e o enunciatário do discurso; exame dos temas e figuras dos discursos intolerantes, para a construção de boa parte do quadro de valores em que esses discursos se inserem e de sua determinação sócio-histórica; exame dos diálogos que os discursos intolerantes mantêm com outros discursos sociais, para a complementação do quadro de valores em que se coloca o discurso intolerante.


1. A narrativa nos discursos intolerantes


Em relação à narrativa, elaborou-se a hipótese de que o discurso intolerante é, sobretudo, um discurso de sanção aos sujeitos considerados como maus cumpridores de certos contratos sociais (de branqueamento da sociedade, de pureza linguística, etc.) e que, portanto, devem ser reconhecidos como pretos ignorantes, usuários de língua incorreta, índios bárbaros, judeus exploradores, árabes fanáticos, e punidos (com a perda de direitos, de emprego, com a morte). Concebida a narrativa dessa forma, a intolerância dos discursos encontra sua justificativa.

A narrativa intolerante deve ser entendida, portanto, como uma narrativa de ruptura de contratos entre destinador e destinatário. O destinador propõe um contrato, por exemplo, de branqueamento da população ou de pureza da língua, e considera que o destinatário - os negros, certos imigrantes, os que escrevem ou falam "mal" - não cumpriu esse acordo e merece, portanto, sanção negativa. O destinador é, assim, o sujeito do poder que julga e pune o destinatário em falta.



2. As paixões nos discursos intolerantes


A semiótica constroi os percursos passionais dos discursos com base nos estudos da modalização, da aspectualização e da moralização discursivas.

As hipóteses sobre a constituição dos percursos passionais dos discursos intolerantes são a de que os sujeitos intolerantes são sempre sujeitos apaixonados, e a de que predominam nesses discursos as paixões ditas malevolentes (antipatia, irritação, ódio, raiva, xenofilia, xenofobia, etc) ou de querer fazer mal ao sujeito que não cumpriu os acordos sociais, tais como examinados no item anterior, mas também a paixão benevolente do patriotismo ou do querer fazer bem à pátria. Diferencia-se a sanção apaixonada da intolerância da sanção desapaixonada da justiça.

O percurso passional é, assim, o que foi descrito por Greimas (1983) em seu estudo sobre a cólera. O sujeito parte de um estado inicial de espera confiante, em que quer conseguir certos valores e acredita que outro sujeito fará com que ele os obtenha. Ao tomar conhecimento de que isso não acontecerá, ou seja, de que aquele em quem confiou nada fará para que ele consiga os valores desejados, ou mesmo fará com ele não os obtenha, o sujeito sofrerá as paixões da decepção e da frustração e, com o crescimento da tensão, as do desespero e da insegurança. Sem os valores almejados e em crise de confiança, o sujeito procurará resolver sua falta e passará a querer fazer mal a quem o colocou, segundo o simulacro construído, nessa situação (Barros, 1990). A malevolência parece ser o caminho para que as coisas sejam postas em seus "devidos lugares", mesmo que a falta primeira não se resolva com isso. Vejam-se, por exemplo, as recentes reações de malquerença da sociedade brasileira aos casos de violência bárbara contra crianças. As paixões malevolentes variam de intensidade - antipatia, irritação, raiva, ódio - e são as que caracterizam, no domínio do público, a xenofobia, por exemplo. Nesse mesmo âmbito, a paixão contrária é a do patriotismo, em que se quer fazer bem à pátria. Em geral, o sujeito do ódio em relação ao estrangeiro, ao diferente, aos "maus" usuários da língua, é também o sujeito do amor à pátria, à sua língua, ao seu grupo étnico, aos de sua cor, à sua religião. É esse jogo entre o querer fazer mal aos "diferentes" e o querer fazer bem aos "iguais" que caracteriza passionalmente o sujeito apaixonado intolerante.

Temos procurado, em nosso grupo de pesquisa sobre a intolerância linguística (ver trabalhos de Leite, 2005, e Bueno, 2006), distinguir duas etapas nos percursos passionais do sujeito intolerante. A primeira é a que acabamos de descrever, aquela em que o sujeito se torna malevolente em relação ao outro, que, "diferente", não cumpriu o contrato de identidade, e benevolente em relação à pátria, aos iguais, aos idênticos. Essa primeira etapa, a mais passional da intolerância, é a do preconceito.

A segunda fase, a da intolerância propriamente dita, é aquela em que o sujeito preconceituoso (decepcionado, frustrado, desesperado, inseguro e que tem ódio) passa à ação, ou seja, completa sua competência e age contra o outro (o causador da falta, o odiado). Greimas, no texto citado (1983), propõe, nesse caso, as ações apaixonadas de vingança ou de revolta, que se distinguem assim, como foi já mencionado, da justiça desapaixonada.


3. As categorias de pessoa, de tempo e de espaço nos discursos intolerantes


Com o exame dos usos discursivos das categorias de pessoa, de tempo e de espaço, estabelecem-se as relações de aproximação e distanciamento entre o discurso e as instâncias de sua enunciação, e entre enunciador e enunciatário. A hipótese, nos discursos intolerantes, é a de que esses procedimentos são fundamentais para a implicitação de conteúdos e para o mascaramento de certas formas de intolerância. Nos discursos intolerantes cruzam-se, em geral, diferentes formas de intolerância (racista, separatista, linguística, sexista, religiosa), e essas relações são hierarquizadas, ou seja, há uma forma de intolerância de base, predominante, a que se subordinam as demais. No Brasil, por exemplo, o preconceito racial em relação aos negros pode ser considerado uma intolerância primária em relação às intolerâncias quanto ao modo de falar dos negros, à sua religião, etc. Os diferentes empregos das categorias discursivas de pessoa, de tempo e de espaço são alguns dos procedimentos usados para essa hierarquização das formas de intolerância, e para seu mascaramento.


4. Temas e figuras dos discursos intolerantes



O exame dos temas e figuras dos discursos intolerantes leva à construção, em boa parte, do quadro de valores em que esses discursos se inserem e de sua determinação sócio-histórica. As hipóteses elaboradas são a de que os discursos intolerantes podem ser tanto discursos apenas temáticos, com figuração esparsa, quanto discursos temático-figurativos, com mais recursos sensoriais, e a de que, no nível de análise dos temas e figuras, a ideologia e as determinações sócio-históricas se manifestam mais claramente. O grande tema dos discursos intolerantes em geral seria, assim, o da diferença e o da identidade, ou seja, o de que a sociedade deve pautar-se pela identidade, pela igualdade, e afastar dela as diferenças.


5. Diálogos dos discursos intolerantes com outros discursos sociais



O exame dos diálogos que os discursos intolerantes mantêm com outros discursos sociais, sejam eles diálogos polêmicos ou contratuais, complementa a determinação do quadro de valores em que o discurso intolerante se insere e sua determinação sócio-histórica. A semiótica trata as relações ditas contextuais como relações entre textos e entre discursos. A hipótese apresentada é a de que há uma grande intersecção nos diálogos estabelecidos entre os diversos discursos intolerantes, mas também diferenças que marcam as especificidades de cada tipo de intolerância. Além disso, os discursos intolerantes dialogam com outros discursos sociais, sobretudo os políticos, os religiosos e os filosóficos (da ética e da moral).



6. O ethos do enunciador dos discursos intolerantes


O exame dos procedimentos e estratégias apontados nos itens anteriores deve levar à construção da identidade intolerante, do ethos intolerante em geral, e também em relação às intolerâncias particulares.

A noção de ethos aqui utilizada foi retomada de Aristóteles e da sua retórica (1991), na perspectiva da semiótica discursiva (ver, sobretudo, Discini, 2001 e 2003, e Fiorin, 2004):

- o ethos se explica nos textos a partir das marcas da enunciação deixadas no enunciado;

- o ethos do enunciador é a sua imagem construída nos textos como um ator da enunciação e não como um actante da enunciação ou como um autor de carne e osso (Greimas e Courtés, 1979, p. 7-8); o actante, para a semiótica, é uma posição sintática, enquanto o ator é a concretização semântica (temática e figurativa) desse actante;

- deve-se distinguir o ethos do enunciador do ethos do narrador (Fiorin, 2004, p. 122), sendo o ethos do narrador definido por um único discurso, e o do enunciador, por um conjunto, uma totalidade de discursos.

Em síntese, não se trata de apontar autores de carne e osso, mas atores discursivos, construídos em cada discurso e no conjunto deles, e pelo diálogo com outros discursos sociais. O ethos do enunciador, tal como foi retomado da retórica na perspectiva da semiótica discursiva, constrói-se, portanto, como um ator da enunciação, a partir de um conjunto de discursos (Discini, 2005 e Fiorin, 2004).

Com base em Aristóteles (1991) e nos estudos de Maingueneau (1995) e Fiorin (2004), podem-se examinar nos textos três tipos de ethe do enunciador:

- o primeiro, construído pela dimensão racional e inteligível dos textos, é o de um enunciador competente, capaz, que diz a verdade e deve levar o enunciatário à credibilidade, à confiabilidade, à crença;

- segundo, criado nas dimensões do inteligível e do emocional (do ethos propriamente dito), é o do enunciador corajoso, justo;

- o terceiro, resultante da dimensão passional e sensorial dos textos, é o do enunciador benevolente, cúmplice.

A sanção apaixonada dos discursos intolerantes leva a uma imagem discursiva do sujeito intolerante, ou melhor, do enunciador dos discursos intolerantes. Trata-se de um ethos subjetivo e cúmplice: de um sujeito indignado, descontente, malevolente, nunca resignado, e fortemente patriótico e benevolente com seus iguais.

A construção discursiva da identidade intolerante, do ethos do enunciador dos discursos intolerantes, é mais um dos modos de conhecimento da intolerância na sociedade e na história, e mais um dos caminhos para combatê-la.



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