Armindo Ngunga

 

1. Introdução

A língua é o meio que as pessoas usam como base da sua comunicação diária enquanto seres sociais. "Os seres humanos comunicam os seus sentimentos, as suas ideias, as suas paixões, os seus conhecimentos, a sua concepção do mundo, a sua cultura, através de vários tipos de sinais convencionais, muitos dos quais variáveis de cultura para cultura, a que se dá o nome genérico de linguagem. A forma sublime, mais completa, porque infinitamente criativa da linguagem humana, é a língua" (Ngunga 1991:13). Geralmente, existe a expectativa de que todo o ser humano deve saber usar pelo menos oralmente a língua do meio onde nasce e/ou cresce.

Nos tempos modernos essa expectativa é ainda acrescentada. Espera-se que os seres humanos de uma certa idade, além de dominarem a sua língua oral também a dominem na sua forma escrita1, pois esta forma pode ser considerada a mãe de todos os milagres que o mundo dos humanos já conheceu. Apesar disso, muitas línguas do mundo ainda hoje não possuem essa outra forma de elas estarem no mundo, a forma escrita.

Na moderníssima sociedade do século XXI, em que todos vivemos em "aldeia global", também se espera que todo o ser humano seja capaz não só de usar correctamente a língua oral e a respectiva forma escrita, como ainda que seja capaz de viajar com segurança, sabedoria e destreza nas mais modernas auto-estradas de comunicação.

Em sociedades livres, essa habilidade de o ser humano usar as variadas formas da sua língua materna como meio de acesso ao conhecimento é um dado inquestionável. Todavia, em outros tipos de sociedade, esse direito é limitado a apenas algum grupo (dominante) e vedado a outro/s grupo/s (dominado/s). Este tipo de sociedade é linguisticamente caracterizado por uma intolerância, pelo não reconhecimento do direito que as línguas têm de coexistir com outra(s) no mesmo espaço, como meio de acesso a uma série de oportunidades que todas elas devem facultar aos seus usuários. Esta foi a característica linguística fundamental da sociedade moçambicana colonial que continuou a sê-lo durante os primeiros vinte e oito anos da independência do país. Apesar de a Constituição da República aprovada em 1990 ser clara ao afirmar peremptoriamente que "Na República de Moçambique a língua portuguesa é a língua oficial" (Artº 6, 1º Parágrafo) e que "O Estado valoriza as línguas nacionais e promove o seu desenvolvimento e utilização crescente como línguas veiculares e na educação dos cidadãos" (segundo parágrafo do mesmo artigo), muitos moçambicanos urbanizados não toleram o uso das línguas moçambicanas em espaços públicos.

A presente comunicação pretende discutir as raízes da intolerância social em geral, e da intolerância linguística em escolas primárias, com base numa análise da experiência moçambicana. Por isso, além da introdução, a comunicação organiza-se como se segue:

(2) Algumas notas sobre a intolerância; (3) Intolerância linguística na escola primária moçambicana; (4) As línguas moçambicanas no ensino e o combate à intolerância (linguística); (5) Conclusões. É importante recordar que, aliás, importa lembrar que a língua não existe desprovida da mente humana, fora dos seres humanos que pertencem a determinadas classes sociais. Pelo que a intolerância linguística deve ser vista como reflexo da intolerância social como um todo.


2. Algumas notas sobre intolerância


Estima-se em muitos milhões de anos desde que o ser humano apareceu sobre a face da terra. Desde os primórdios do seu surgimento, o ser humano foi sempre caracterizado pelo medo dos outros seres, sobretudo do outro ser humano, como parte do seu instinto de sobrevivência. O desejo incessante de dominar e, se for necessário matar para conseguir esse objetivo, deve ser visto como a forma mais refinada de instinto de sobrevivência.

Aliás, não parece que este instinto seja característica exclusiva do ser humano. Aqui precisaríamos do testemunho de veterinários, de especialistas em botânica, para nos relatarem as suas experiências para sabermos se o desejo de dominar, expandir o território e ocupar não seria uma das características universais dos seres vivos.

Eu vou relatar alguns fatos sobre minhas observações ao longo de pouco mais de quinze anos. Em 1991, fui nomeado diretor-adjunto da Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique, o que me dava o direito de assistir a algumas reuniões do Conselho de Directores de Faculdades quando o meu chefe direto estivesse, por alguma razão, impossibilitado de o fazer. Não havendo lugares previamente marcados para os membros do Conselho, a primeira observação que eu retive na primeira reunião, e depois foi confirmada nas seguintes, foi a disposição espontânea dos Diretores na Sala de Reuniões. Pormenores tais como gênero, idade, título acadêmico, cor da pele, origem social, língua materna, até língua de formação (de acordo com o país onde tiver feito a pós-graduação estrangeira) e outros, determinavam a disposição das pessoas na sala e até a partilha e defesa de opiniões, tomada de posições em relação a algumas matérias em discussão. E isto notei sempre que viajei para qualquer sítio dentro ou fora do país. Uma vez atrevi-me a pensar se tal não poderia justificar um livro intitulado "A teoria das afinidades", essas afinidades que muitas vezes geram intolerância ou resultado da intolerância, dependendo do prisma sob o qual quisermos analisar o fenômeno.

Uma vez desloquei-me a uma província aonde fui realizar trabalho de campo. Nisto, estando nós a entrevistar pessoas no campo agro-pecuário nos arredores da cidade de Quelimane, começou a chover inadvertidamente. Nós nos refugiamos para a varanda de um pavilhão do aviário que fazia parte do complexo. No interior do pavilhão havia frangos brancos e castanhos (de cor marron) . Todavia, a coisa mais importante, a que me chamou a atenção e eu comentei com o meu colega, foi que os frangos se juntavam à volta dos bebedoiros em função da cor das suas penas. Seria caso para dizer que os semelhantes se atraem (os diferentes se repelem), o que seria desdizer um princípio fundamental da Física que diz exactamente o contrário? E quem explicaria o fato de, apesar de na prática agrícola existir a técnica de consociação, que consiste na utilização do mesmo espaço para produzir diferentes culturas, o mais aconselhável é que se faça a rotação das culturas (a utilização do mesmo espaço para produzir uma cultura de cada vez, sem misturas!). Portanto, de forma mais ou menos precipitada, alguém poderia concluir que, tal como os seres humanos, os animais e as plantas também não toleram a presença de seres diferentes, preferindo a companhia de seus semelhantes..

Eu acho que as experiências se poderiam multiplicar se cada um de nós se desse algum tempo para se referir à sua experiência. É claro que existem exceções, mas essas tão sempre dignas de nota. Por isso é que em sociedades multirraciais é normal ouvir uma pergunta do tipo, "Qual João, aquele que se casa com uma branca?" (o que quer dizer que o João não é branco, é, portanto, o fato de ele casar com uma branca um caso marcado!); De que Maria está a falar, aquela que casa um homem do sul?" (o que significa que a Maria não é do Sul, é, portanto, mais um caso marcado!). Quando um africano vai a uma conferência à Europa, a primeira coisa que faz é ver se descobre algum africano igual. A segunda é saber de que região de África é que o/a outro/a africano vem. Se vier da mesma região da África, procura saber que língua fala. E a resposta a esta pergunta pode determinar o ambiente durante o resto da conferência, pois se for moçambicano e aparecer um guineense, este vai ser preferido em detrimento de um sul-africano ou de um malawiano ou zimbabweano. Neste caso, a afinidade linguística desempenha um papel determinante na escolha de companheiro de ocasião, até de alguém que se pode transformar em amigo para o resto da vida, como uma vez me aconteceu. Eu posso desenvolver um pouco este episódio.

A primeira vez que atravessei conscientemente as fronteiras do meu país foi em 1985. Tinha acabado de ser contratado para assistente estagiário na área de Linguística Africana que se estava a firmar, e tive de viajar para a Zâmbia para uma conferência sobre as línguas locais. Como se sabe, Moçambique encontra-se na região da África Austral linguisticamente dominada por Inglês. Uma conferência regional daquela natureza só poderia ser dominada por esta língua. Na altura o meu nível de conhecimento da língua inglesa falada ainda era esverdeado, ao nível de um bilinguismo muito subordinado, o que me colocava na situação de um real estrangeiro, além de caloiro naquelas andanças. Para piorar a situação, a conferência já tinha iniciado quando eu cheguei a Lusaka e já não havia quartos singulares. No meio da aflição alguém me pergunta que língua de Moçambique é que eu falava e disse que falava muitas mas, se quisesse saber a minha língua materna, esta era o Yao. Aí ele esboçou um largo sorriso e me cumprimentou em Yao, embora já o tivesse feito antes em Inglês. Era um malawiano, professor de Linguística que era também participante da conferência. Depois desta saudação ofereceu-se a partilhar comigo o quarto que ele ocupava sozinho, e encarregou-se de tratar por mim o resto dos assuntos logísticos que ainda tinha de acertar. Desde esse dia até hoje somos amigos e nos tratamos como se fôssemos verdadeiros irmãos. Mais uma vez, este episódio que ilustra tolerância, refere-se a uma tolerância em relação a um semelhante. O que pode servir para adivinharmos o contrário se eu não partilhasse a mesma língua que aquele professor malawiano. Aliás, durante a conferência houve gente que, por causa da forma como nos tratávamos, tivesse perguntado se nós nos teríamos conhecido antes.

Retomando a nossa discussão, há uma questão importante que se pode colocar a que nem sempre estamos preparados para responder, dada a pressão que sofremos de termos de ser tolerantes, termos de aceitar o outro, não devermos discriminar, etc., etc., que é "onde está o mal em os seres vivos se discriminarem em função das afinidades como forma de se defenderem contra os outros para garantirem a sua sobrevivência?" Se tudo fosse assim tão linear como acontece nas plantas e nos animais, até poderia não haver nenhum mal. O mal, o grande mal, existe entre os seres humanos, que são capazes de usar a discriminação como arma nas mãos da classe dominante de fomento e defesa da injustiça social. Aqui começa o mal, quando a discriminação é usada como forma de expressão de intolerância, incapacidade ou a recusa explícita ou implícita de o ser humano aceitar partilhar o mesmo espaço social ou um bem comum com o outro ser humano. Esta recusa, que se pode manifestar de várias maneiras, tem também se manifestado através da língua.

Na história recente da humanidade, há muitos exemplos de intolerância a que nos podemos referir, que levaram a casos extremos de genocídio. Tais são os casos da Alemanha nazi, da África do Sul do Apartheid, do Ruanda dos Hutus e Tutsis, dos muçulmanos do norte e os cristãos e animistas do sul no Sudão, entre outros.

Numa sociedade multilíngue, essa intolerância pode ter vários matizes, conforme a quantidade de grupos em "luta" pela partilha ou pela recusa de partilha do mesmo espaço ou do mesmo bem comum. Neste processo, o tipo de linguagem utilizada há-de sempre denunciar a classe, o grupo a que cada um pertence. Ninguém pode passar por essa chuva sem se molhar.

E porque a intolerância conduz à má partilha não só do espaço, mas também dos recursos, o que depois conduz à degeneração do tecido social porque leva à divisão da família de uma nação inteira, traduz-se no enfraquecimento da sociedade, uma vez que desvia as atenções dos que deviam participar na luta pelo engrandecimento do bem comum.

Em todos os países podemos encontrar exemplos de intolerância de qualquer tipo em geral e intolerância linguística em particular. No caso de Moçambique, há muitos exemplos de intolerância que a história registou. Mas todos eles se podem reduzir à intolerância linguística, que teve os seus efeitos nefastos no desenvolvimento da sociedade, como teremos a ocasião de ver nas próximas linhas.


3. Intolerância linguística nas escolas primárias moçambicanas


Nesta seção, antes de nos dedicarmos a falar sobre a intolerância linguística na escola primária moçambicana, vamos primeiro descrever a situação linguística do país. Neste processo, alguns aspectos de intolerância linguística poderão deixar-se descobrir de maneira implícita, enquanto outros terão de ser apresentados explicitamente logo a seguir. Comecemos pelo país.

A República de Moçambique é um território de 799.380 Km² situado na costa oriental da África Austral. Este país ascendeu à independência a 25 de Junho de 1975, 10 anos depois de uma luta armada levada a cabo pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) contra o colonialismo português. Com uma linha de costa de cerca de três mil quilômetros de comprimento, Moçambique partilha as suas fronteiras com seis países, nomeadamente: República da Tanzânia, a norte, Repúblicas de Zâmbia, Malawi, Zimbabwe e África do Sul e Reino da Swazilândia a oeste, e novamente, a República da África do Sul, a sul. A sua população é estimada em cerca de 20 milhões de pessoas.

Administrativamente o país divide-se em dez províncias, a saber, de norte a sul: Cabo Delgado, Niassa, Nampula, Tete, Zambézia, Manica, Sofala, Inhambane, Gaza e Maputo. A cidade de Maputo, capital do país, tem estatuto de província. Maputo, Beira e Nampula são os três maiores centros urbanos do país, localizados no sul, centro e norte, respectivamente. As províncias de Zambézia e Nampula são as mais populosas, sendo habitadas por perto de metade da população moçambicana. Maputo é a menor província enquanto Niassa é a maior e a menos desenvolvida (ou mais subdesenvolvida) e menos populosa.

Faltam estudos muito precisos que forneçam informações reais sobre a situação etnolinguística do país devido à dissonância na compreensão dos termos "língua" e "dialeto" entre os linguistas e os não linguistas. Isto é, do ponto de vista técnico, parece haver uma espécie de consenso em relação a estes termos, mas o regime colonial português adulterou esse significado, uma vez que a única língua que era reconhecida como tal era a portuguesa, e as restantes eram chamadas "dialetos". Daí que hoje, depois que se aprendeu que o conceito colonial visava apenas a inferiorização das línguas moçambicanas, hoje quase que se tenta banir o dialeto. Mesmo nos casos em que tecnicamente o conceito seria bem utilizado, por se saber que se trata de variante de uma determinada língua, os linguistas têm de ter algum cuidado, sob o risco de serem tidos como "aqueles que sempre desprezaram as nossas línguas", "colonialistas" ou "assimilados", entre outros atributos. Mas também os recenseamentos nunca perguntam que dialeto de que língua é que cada cidadão fala. E o recenseador também jamais estaria capacitado para saber que a "língua a que o recenseando se refere é uma língua como tal, mas sim um dialeto da língua X ou Y". Mesmo entre os linguistas, a classificação (embora quase todos tenham como referência Guthrie 1967-71), a nomeação e até o número das línguas varia de linguista para linguista, dependendo dos materiais que tiver lido.

Por exemplo, uns (Katupha 1984, 1988; Marinis 1981; Rzewuski 1978; Yai 1983) dizem existir oito línguas moçambicanas, das quais 4 majoritárias (Makuwa, Sena, Shona e Changana) e quatro minoritárias (Makonde, Yao, Tonga e Copi). Para outros (Liphola 1988 e Ngunga 1985, 1987), esta classificação não é aceitável porque se trata de estudos que se baseiam apenas em referências bibliográficas, sem o necessário confronto com a situação no terreno, onde a realidade é bem mais complexa. Aliás estes últimos são também apoiados pelos dados dos recenseamentos gerais da população, que fornecem alguns elementos sobre a situação linguística de Moçambique. Sim, os recenseamentos só podem alguma ideia sobre a situação linguística do país, mas não uma ideia real (Fasold ibd.), cabe aos linguistas saberem trabalhar com esses poucos dados, mas sempre conscientes de que o recenseamento geral da população não é um recenseamento linguístico. Portanto não se pode exigir que ajudem em tudo o que os linguistas gostariam de ver.

Os recenseamentos deixam por responder algumas perguntas importantes para os linguistas, por isso às vezes fornecem informações contraditórias entre dois recenseamentos que, em princípio, não deveriam existir. Por exemplo, no ponto 5 "População e Língua Materna" dos dados de recenseamento (Comissão Nacional do Plano 1980) lê-se: "O Recenseamento Geral da População permitiu recolher informação sobre um total de 25 línguas que, no total, são faladas pela quase totalidade da população moçambicana". Isto não ajuda a saber quantas línguas moçambicanas existem e muito menos quantos grupos étnicos, apesar de geralmente a cada grupo étnico corresponder uma língua. E não se sabe se entre "as 25 línguas faladas pela quase totalidade da população moçambicana", estão inclusas línguas estrangeiras como Alemão, Árabe, Espanhol, Francês, Inglês, Italiano, Russo, entre outras. Das 25 línguas referidas, apenas 17 são registadas no gráfico sobre "População e língua materna", a saber: Makhuwa, Lomwe, Chuwabu, Marenje, Mwani, Yao, Makonde, Nyanja, Sena, Nyungwe, Shona, Changana, Tswa, Ronga, Copi, Tonga e Português.

O referido gráfico sugere que as oito restantes não são línguas maternas dos moçambicanos, o que não vem explícito em lado algum no documento. Fica-se, portanto, no âmbito de especulação a que o leitor deve recorrer de acordo com os seus interesses. Do mesmo modo, talvez com base nesta lista seja possível especular-se que existam em Moçambique pelo menos 17 grupos étnicos sem, contudo, fazer corresponder necessariamente uma língua a cada grupo étnico. Parece contraditório. Mas é assim mesmo. O grupo que fala Português como língua materna é muito heterogêneo em termos de substrato étnico-cultural. Se os membros deste grupo têm a mesma língua, o mesmo não se pode dizer em relação a sua cultura, pois muitos deles são filhos de moçambicanos falantes (como língua materna) de diferentes línguas moçambicanas e caracterizáveis através de substratos étnico-culturais que cada língua implica. Estes substratos étnico-culturais são transmitidos às novas gerações por meio de várias formas, cuja expressão linguística é realizada através do Português. Em termos sociais, está-se, portanto, perante um processo de mudança linguística (Brenzinger, Mathias et. al., in Robins, R. H. ed. 1992:32) que ainda não significa mudança cultural. Neste contexto, a língua portuguesa chega a veicular algumas culturas moçambicanas. Aliás, é basicamente isto o que faz com que o Português falado em Moçambique seja distinto do falado em outros países onde ele é língua oficial.

O recenseamento de 1997 (agora está em curso outro recenseamento e entristece-me saber que o que vou afirmar aqui vai ficar ultrapassado dentro de menos de um mês), produziu resultados que também criam alguma inquietação em quem queira saber um pouco mais sobre os grupos etnolinguísticos do país. Por um lado, uma comparação com o censo de 1980 deixa notar que em cerca de dezessete anos há línguas que (pelo menos teoricamente) desapareceram (do mapa linguístico de Moçambique) e há outras que surgiram, ou simplesmente mudaram de nomes (talvez uma questão de tratamento dos dados recolhidos). Por outro lado, são reconhecidas apenas seis línguas em nível nacional como as que seguem:


Makhuwa 26.0%

Changana 11.0%

Lomwe 8.0%

Sena 7.0%

Chuwabu 6.0%

Português 6.0%

Fonte: Firmino (2000:9).


As restantes línguas moçambicanas são misturadas num grupo amorfo de "outras línguas bantu" que são "línguas maternas" de 33% de moçambicanos. Portanto, mais uma vez fica ao critério de cada um saber se a sua língua ou o seu grupo existe e é reconhecida(o) como tal, e qual o seu lugar no conjunto da família moçambicana.

A tentativa de solução desta inquietação, através da tabela "línguas maternas predominantes por província", não chega a produzir o efeito almejado, pois traz outro problema, que é o do caráter nacional da língua portuguesa. Esta língua, que é pretensamente a mais espelhada, só aparece em Maputo (Cidade e Província) e Sofala, onde se conseguiu pelo menos 10% de respondentes entre os recenseados em cada local. De fato, olhando para a situação linguística de Moçambique, onde cada língua é muito localizada, a tabela acima é enganadora, pois dá a impressão de que são as línguas mais faladas no país, quando de fato não é o caso. Todas aquelas línguas são as mais faladas em cada província onde são faladas, de onde são "originárias" se assim o quisermos. Pelo quê o mais correto seria uma tabela do tipo da que se segue:




LÍNGUAS

CD

NS

NP

ZB

TT

MN

SF

IN

GZ

MP

MAP

1

Makonde












2

Mwani












3

Makhuwa












4

Yao












5

Nyanja












6

Koti












7

Lomwe












8

Chuwabu












9

Nyungwe












10

Sena












11

Ndau












12

Tewe












13

Manyika












14

Tshwa












15

Tonga












16

Copi












17

Changana












18

Ronga












19

Português













Legenda: CD = Cabo Delgado; NS = Niassa; NP = Nampula; ZB = Zambézia; TT = Tete; MN = Manica; SF = Sofala; IN = Inhambane; GZ = Gaza; MP = Maputo; MAP = Cidade de Maputo.


Esta tabela sugere que a língua portuguesa é falada (embora um pouco em toda a parte) em todo o país., enquanto as moçambicanas estão distribuídas como se apresenta pelos locais onde são faladas. Portanto, para efeitos de ensino, fica claro que nenhuma das línguas moçambicanas se pode advogar de ser majoritária no país, pois tirando o Sena (quatro províncias), Makhuwa (3 províncias) e o Changana (3 províncias com a cidade de Maputo!), as restantes são faladas em uma ou duas províncias.

O surgimento e o desaparecimento de línguas de um recenseamento para outro e o aumento empolgante do número de falantes de algumas línguas pode ser interpretado de diferentes maneiras. Algumas línguas são mortas politicamente e outras são reavivadas ou promovidas pela mesma via. Esses arranjos podem ser usados para exacerbar manobras, visando justificar medidas tendentes a favorecer intolerância linguística. Os prejudicados podem entender que as estatísticas estão a prejudicar o seu grupo em benefício de outros grupos.

E isto já não se coloca apenas em relação à língua portuguesa, coloca-se também em relação às línguas moçambicanas entre si, pois agora a luta pela conquista do espaço pode situar-se a este nível.


4. As línguas moçambicanas no ensino e o combate à intolerância (linguística)


Como se pode observar, no Moçambique colonial não havia espaço para se falar de introdução de línguas locais no sistema de ensino, pois todos os portugueses falavam a língua portuguesa e nenhuma outra língua era reconhecida. Como tal, sendo Portugal um país monolíngue, monolíngues tinham de ser as suas colónias. Daí que a língua veicular de ensino fosse obrigatória e indiscriminadamente a língua portuguesa.

Por outras palavras, estamos a falar de uma sociedade moçambicana onde crianças falando exclusivamente a língua não portuguesa em casa, o seu primeiro contacto com a escola tinha de ser feito em língua portuguesa. A escola não tolerava a existência de outras línguas no seu espaço. Consequentemente, adotou-se um sistema de sete anos de ensino primário para os negros indígenas, que correspondiam a quatro classes que eram feitas em quatro anos pelos brancos ou negros assimilados que tivessem a acesso a creches.

Com a proclamação da independência, foi criado um novo sistema nacional da educação, que preconiza sete anos de ensino primário, aparentemente transformando em classes reais os três anos que não contavam no sistema anterior, senão apenas para os indígenas aprenderem a língua portuguesa (sem progredir em termos de classes!)

No ano 2001, muito depois de um intenso trabalho de advocacia dos linguistas, o parlamento moçambicano aprovou a introdução de dezesseis línguas locais nas escolas públicas, sobretudos em zonas rurais linguisticamente homogêneas. De acordo com esta medida, ao invés de o aluno ficar a marcar passo na mesma classe enquanto aprende a língua portuguesa, ele vai passando de classe em todas as matérias que são ensinadas na sua língua materna, ao mesmo tempo que aprende o Português como disciplina que não é meio de ensino. Quando completa os três anos de escola, espera-se que o aluno já tenha aprendido o Português, que passa a ser meio de ensino, enquanto a língua materna passa a ser disciplina.

Em 2003 foram introduzidas as dezesseis línguas nas escolas como meio de ensino e como disciplina, através do modelo de educação bilíngue, marcando assim um passo inédito na história da educação em Moçambique e, de forma particular, no combate à intolerância linguística na escola moçambicana. Embora existam problemas ainda por resolver em diferentes capítulos, tais como a formação de professores, elaboração e distribuição de livros, gestão do próprio sistema educativo de acordo com esta nova realidade, os resultados são encorajadores, sobretudo em Matemática e Ciências Naturais, além de pôr lado a lado todas as línguas a contribuírem para o desenvolvimento do país, através do seu uso como meio de transmissão de conhecimentos científicos. Portanto, os dias da intolerância linguística na escola primária moçambicana estão contados, pois já iniciou-se o processo de coexistência das línguas moçambicanas e o Português no espaço escolar, e já vai no seu quinto ano, o que só por si é um grande sucesso. Este sucesso é também testemunhado pelo fato de o processo, que iniciou-se com vinte e três escolas na fase experimental, estar já a caminho de setenta escolas em cinco anos, antes do início formal da expansão horizontal, portanto, por iniciativa das comunidades que se têm mostrado cada vez mais interessadas neste tipo de ensino, em detrimento do ensino monolíngue em Português, ainda em vigor na maioria das escolas. Esta força das comunidades que obrigam as autoridades locais da Educação a aumentar o número de turmas ou de escolas de educação bilíngue é garantia de que o futuro da educação formal nas zonas rurais linguisticamente homogêneas em Moçambique jamais será monopólio de uma única língua.

Espera-se que dentro dos próximos dois anos comece seriamente a expansão horizontal e o Estado assuma a educação bilíngue como uma verdadeira aposta no combate à desigualdade e à intolerância linguística na escola pública.

Com a introdução das línguas nas escolas deu-se um passo muito importante rumo à observância do preceituado no artigo 24o da Declaração do Direitos Linguísticos, segundo o qual "as comunidades linguísticas têm direito a decidir qual deve ser o grau de presença da sua língua, como veicular e objeto de estudo, em todos os níveis de ensino no interior do seu território: pré-escolar, primário, técnico e profissional, universitário e formação de adultos", além de que todo o ser humano tem o direito de aprender a ler e a escrever na sua língua materna (UNESCO 1996)..


5. Conclusões


Como se viu acima, apesar de a língua portuguesa ser falada, em diferentes níveis de fluência, por cerca de 30% de moçambicanos, apenas 6% é que a têm como língua materna. A situação era ainda pior há trinta anos. Mas o governo manteve-se irredutível quanto a repensar a língua de ensino para crianças que não têm Português como língua materna até 2003, quando abriu a mão e autorizou que em vinte e seis escolas fossem introduzidas as línguas das crianças como meio de ensino, a título experimental. Este projeto foi amplamente aplaudido nas zonas rurais, onde hoje existem cerca de setenta escolas.

A intolerância linguística na escola primária moçambicana custou ao país muito milhares de quadros, que poderiam ter sido formados e não foram, porque desistiram nos três primeiros anos de escolaridade. Este fato contrasta com aquilo que se tem verificado hoje nas escolas de experimentação, onde as desistências foram combatidas em grande medida, e cada dia se revelam evidências de que afinal as crianças moçambicanas não são nada acanhadas, como eram conhecidas, elas têm uma participação muito ativa nas aulas e demonstram um alto grau de inteligência.

Para terminar, importa sublinhar aqui que o melhor instrumento de combate à intolerância é a tolerância, o convívio, a partilha de espaço e de recursos, que são os elementos fundamentais que levam a uma relação de justiça e de complementaridade entre as pessoas que vivem no mesmo território, que vivem no mesmo planeta.


Referências


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(ed.), Endangered Languages. London.

Comissão Nacional do Plano. 1980. Recenseamento Geral da População.

Fasold, R. 1984. The Sociolinguistics of Society: Introduction to Sociolinguistics.

Blackwell. Oxford UK & Cambridge USA.

Firmino, G. 2000. Situação Linguística de Moçambique. Instituto Nacional de Estatística.

Maputo.

Katupha 1988. O panorama linguístico de Moçambique e a contribuição da linguística

na definição de uma política linguística apropriada. Lua Nova: Artes e Letras.

Katupha, J. M. M. 1984. Alguns elementos sobre a situação linguística na República

Popular de Moçambique e as suas implicações para o desenvolvimento rural. Ms.

Faculdade de Letras. Universidade Eduardo Mondlane. Maputo.

Liphola, M. 1988. As línguas Bantu de Moçambique: Uma pequena abordagem do ponto

de vista sócio-linguístico. Lua Nova: Artes e Letras. Pp33-37. Maputo.

Marinis. H. 1981.Línguas Bantu: Sua história e sua Classificação. Ms. Faculdade de

Letras. Universidade Eduardo Mondlane. Maputo.

Ngunga, A. 1991. O papel das línguas moçambicanas nos meios de comunicação social.

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Ngunga, A. 1987. As línguas bantu de Moçambique. LIMANI, Linguística e Literatura 2.

Pp.59-70. Faculdade de Letras, Universidade Eduardo Mondlane.

Ngunga, A. 1985: "Estatuto de línguas em instituições de aprendizagem em Moçambique". Paper presented at the Sub-regional Seminar on Local Languages. Lusaka, Zâmbia, December.16-20.

Rzewuski, E. 1978. Línguas Moçambicanas em Classificação de Guthrie. Ms. Faculdade

de Letras. Universidade Eduardo Mondlane. Maputo

UNESCO (ed.). 1996. Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. UNESCO.

Yai, O. B. 1983. Elements of a policy for the promotion of national languages. Paris:

UNESCO.

1 Escrita, uma tentativa de representação da linguagem oral.