Odair da Cruz Paiva


Resumo:


O final da II Guerra Mundial marcou o início da colocação, fora da Europa, de um contingente significativo de deslocados e refugiados de guerra. A organização de campos de refugiados na Alemanha, Áustria e Itália e a posterior inserção desses sujeitos em diversos países, demonstrou quão complexas as formas da política internacional tenderiam a se constituir a partir da segunda metade do século XX. No Brasil, a inserção no novo cenário internacional apontou para a necessidade de reestruturação da política imigratória que, por outro lado, expressava uma nova geopolítica do desenvolvimento do então "mundo capitalista". O objetivo deste artigo é apontar as linhas gerais do processo de inserção de refugiados e deslocados de guerra no Brasil entre os anos 1947-1951, na perspectiva da redefinição da política imigratória e econômica brasileira, da problemática dos Direitos Humanos e também como uma resposta possível aos efeitos dos processos de intolerância e exclusão que marcaram a dinâmica da II Guerra Mundial.


Considerações Preliminares


A pesquisa que subsidia as considerações que se seguem precede a criação do LEI e impõe uma dinâmica particular da relação do Laboratório com ela. Em outros termos, o elemento motor do trabalho não foi o Laboratório enquanto um coletivo, mas a minha identidade enquanto professor e pesquisador e minhas preocupações enquanto historiador. Dessa forma, a constituição do Laboratório engendra uma dinâmica complexa, na medida em que ele agrega e também é agregado por pesquisadores, cuja trajetória de trabalho é anterior a ele. Este elemento coloca desafios na relação do Laboratório com os pesquisadores e as pesquisas em curso.


Com isso, quero marcar a ideia de que a consolidação do Laboratório terá que vencer os desafios da tolerância ou intolerância na produção de trabalhos que, durante algum tempo ou durante muito tempo, foram e ainda serão gestados em parte fora dele. Vencer os desafios das relações, por vezes tensas entre o coletivo e as individualidades me parece inevitável, até por que, noutro sentido, o próprio Laboratório ainda levará um tempo para gestar uma cultura entre seus pesquisadores que deverá colocar certo consenso sobre o que virá a ser o mote das pesquisas dele próprio.


Talvez mais importante do que isso, gestar um acúmulo interno acerca das compreensões diversas sobre a ideia da intolerância em seus mais variados matizes, como o político, o ideológico, o cultural, o religioso, o econômico, o filosófico, o linguístico, etc. Essa cultura ainda terá que enfrentar os desafios das inevitáveis diferenças internas dentro do Laboratório, na busca do sentido da diversidade e de sua compreensão como algo positivo. Assim, o LEI tem e sempre terá, em sua dinâmica interna, os desafios que ele se propõe a enfrentar na sua relação com a sociedade.


O tema desse estudo nos remete à imigração para São Paulo pós II Guerra Mundial, sua relação com o processo de industrialização e com os acordos firmados entre o governo brasileiro e o C.I.M.E1. Há, entretanto, um período imediatamente anterior (1947-1951) no qual os objetivos de uma nova política imigratória no país, e as estratégias para sua realização, ainda estavam sendo gestadas.


A entrada de imigrantes em São Paulo a partir de 1947 pode ser considerada como reflexo da retomada da política imigratória, após um intermezzo de quase duas décadas. Desde o final dos anos 1920, o refluxo da imigração para o Brasil foi patente. Na década de 1930 esta tendência se manteve, influenciada no plano interno pela política de nacionalização da mão-de-obra empreendida pelo governo Getúlio Vargas e, no plano externo, pela ascensão de regimes de direita em países de longa tradição emigrantista, como Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, além da crise econômica pós quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, que se estendeu, ao menos, até meados dos anos 1930.


Após o término da II Guerra Mundial, uma nova geopolítica do desenvolvimento, gestada pelos países capitalistas centrais, criou a possibilidade do estabelecimento de companhias multinacionais (principalmente europeias e estadunidenses) em várias regiões do globo e, particularmente, na América Latina.2 Um novo processo de expansão da economia capitalista teve início após o término do conflito mundial. No Brasil, os embates entre o nacionalismo econômico, gestado durante o primeiro mandato de Getúlio Vargas, e o processo de transnacionalização foram vigorosos a partir da metade dos anos 1940 e praticamente durante toda a década de 1950.


A retomada do processo imigratório pós II Guerra - e no período particular entre 1947 1951- esteve compassada com questões mais amplas, ligadas a conflitos e processos de exclusão e intolerância produzidos durante o conflito mundial na Europa, e às necessidades de distencionamento social naquele continente. Por outro lado, a imigração de deslocados e refugiados de guerra apontava para a inserção dos movimentos migratórios na nova configuração econômica, que marcaria as relações internacionais no pós-guerra, e da qual fizeram parte os investimentos em regiões periféricas do globo e a instalação de companhias multinacionais. No plano interno a imigração representava uma expressão do projeto de transnacionalização da economia brasileira.


O final da II Guerra Mundial marcou o início da colocação, fora da Europa, de um contingente significativo de pessoas vítimas do conflito. Os números são controversos mas não seria equivocado afirmar que aproximadamente dois milhões de pessoas estavam fora de suas regiões de origem após o conflito, vítimas de deslocamentos forçados por forças de ocupação.


Em sua maioria, eram egressos de países que foram situados, após o conflito, na zona denominada Leste Europeu e, portanto, na órbita política da União Soviética. A organização de campos de refugiados na Alemanha, Áustria, Itália e Grécia, e a posterior inserção desses sujeitos em diversos países, demonstrou quão complexas eram as formas da política internacional a partir da segunda metade do século XX. Entre 1947 até 1951 a Organização Internacional de Refugiados foi a principal responsável pela realocação desse contingente em diversos países do bloco ocidental, dentre eles Israel, Estados Unidos, Austrália, África do Sul, Nova Zelândia, Venezuela, Argentina, Peru, Canadá, etc.


Em nosso país, a inserção destes sujeitos, embora pouco expressiva em termos numéricos - não mais do que 25.000 pessoas em quatro anos - inaugurou um novo momento da política imigratória brasileira, profundamente marcada não apenas pela nova geopolítica do desenvolvimento do então mundo capitalista, mas também pela atuação de organismos multilaterais que irão se preocupar com a gestão planetária das questões migratória, financeira, do desenvolvimento, educação, da saúde, etc.


Dentre os objetivos do projeto quero salientar a importância em se decodificar as linhas gerais da inserção de refugiados e deslocados de guerra no Brasil, entre os anos 1947-1951, como uma resposta possível aos efeitos dos processos de intolerância e exclusão que marcaram a dinâmica da II Guerra Mundial. Como pano de fundo, a semântica criada entre dois termos: Refugiados e Deslocados de Guerra aponta para as tensões - na perspectiva dos Direitos Humanos - sobre o direito à nacionalidade e à fixação numa dada territorialidade.



Imigrantes no pós II Guerra Mundial: desenvolvimento econômico, intolerância e direitos humanos.



No início dos anos 1940 e, mais especificamente entre os anos 1942/3, um panorama favorável à vitória dos aliados na II Guerra Mundial delineava-se, suscitando análises e projeções sobre necessidades em se realocar grandes contingentes de trabalhadores do Velho Mundo para outras regiões do planeta.3 O número de refugiados durante a II Guerra Mundial, tanto na Europa quanto no Oriente, é bastante controverso. As cifras geralmente variam entre oito milhões até 70 milhões, dependendo da fonte consultada.4 De qualquer forma, houve, durante este conflito, deslocamentos em massa de populações que fugiam do avanço nazista e, ao mesmo tempo, um deslocamento forçado, para fazendas e fábricas, que utilizavam pessoas para o trabalho escravo ou sua colocação em campos de concentração.


Após a II Guerra, houve o retorno da grande maioria destas populações para suas regiões de origem; entretanto, dados da O.I.R. apontam que em julho de 1947 havia aproximadamente 700.000 refugiados na Alemanha e Áustria, ocupadas pelas forças aliadas. Destes, a grande maioria não desejava voltar para suas regiões de origem.5 Os trabalhos de triagem e encaminhamento dos refugiados e deslocados de guerra tiveram início em 1947, sob a coordenação da Organização Internacional de Refugiados (O.I.R.)6.


A comissão preparatória da OIR começou a agir em 1o. de julho de 1947, dependendo de certas exigências jurídicas para o estabelecimento da agência. Diretamente, passou a cuidar de cerca de 704.000 refugiados e deslocados, a maioria na Alemanha, na Áustria, na Itália e na Europa Oriental e Central, com menores números em outros países da Europa. Incumbiu-se da proteção dos interesses de cerca de 900.000 outros, dos quais 350.000, aproximadamente, se mantinham nas zonas ocupadas e 550.000 - com especialidade os refugiados de antes da guerra - distribuídos por todas as nações da Europa Ocidental.7


O novo mapa da Europa e a desorganização econômica após o conflito impediam o retorno integral da população a suas localidades de origem, particularmente aquelas oriundas de regiões que passaram para a órbita da URSS. Dessa forma, num primeiro momento, o fluxo emigratório entre os anos 1947-1951 constitui-se, fundamentalmente, por refugiados e deslocados de guerra que se recusaram a voltar para suas localidades de origem. Eram russos, poloneses, ucranianos, romenos, lituanos e búlgaros. Agências como a U.N.R.A.A. e O I.R. exerceram papel fundamental no processo de repatriação e, principalmente, recolocação desta população.

A administração da O I.R. era composta por um conselho formado de delegados das nações-membros. (...) Com sede em Genebra, Suíça, a O I.R. possuía um quadro de 2.563 funcionários de 38 nacionalidades; estes trabalhavam em 31 escritórios das zonas ocupadas da Alemanha e Áustria, na Itália, nos países europeus que recebem imigrantes, nas Américas e no Médio e Extremo Oriente. Este quadro era acrescido por 3.156 funcionários recrutados no local das atividades. 8


Os campos de deslocados de guerra foram montados apenas do lado ocidental, o que implica dizer que a alternativa soviética foi a de realocar - sem direito a escolha - para as zonas de origem ou para outras, todos aqueles que estivessem fora de suas regiões de origem após o conflito. Aparentemente, a alternativa ocidental foi mais democrática, na medida em que respeitava o direito de boa parte desta população em não retornar para seus países de origem, agora submetidos à hegemonia da URSS. A realocação destas pessoas colocava um problema de Direito Internacional que foi resolvido, por um lado, de forma semântica.


A denominação Deslocados de Guerra aos que, embora assim fossem considerados em sua origem, burlava uma realidade que era muito mais próxima a de refugiados, dada a negativa que estas pessoas tinham com relação às motivações de caráter político e ideológico no tocante ao seu retorno às regiões de origem. Nominar como deslocados de guerra e não como refugiados foi uma alternativa encontrada para não tensionar ainda mais as relações com a URSS. Considerar estas populações como refugiadas teria sérias implicações políticas.


Por outro lado, e como decorrência do que foi exposto anteriormente, o ocidente procurou desconsiderar ou despolitizar ao máximo acordos internacionais anteriores - inclusive elementos do próprio estatuto da OIR - que definiam a condição dos refugiados. Se por um lado esta estratégia buscava burlar possíveis conflitos com o bloco oriental, por outro, apenas em sua aparência, ou, para não ser tão incisivo, apenas em parte revelava uma preocupação com a questão dos direitos humanos. Penso ser necessário, neste momento da reflexão, agregar um outro elemento. Ao passo em que a realocação destes sujeitos em diversas partes do mundo entre os anos 1947 e 1951 se concretizava, era gestada, na Organização das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem.


Curioso notar que, em seus 30 artigos, a palavra cidadania não aparece nenhuma vez. Não encontramos uma menção direta e objetiva sobre um direito à cidadania. Não podemos cobrar dos homens do passado a linguagem do tempo presente, mas é interessante notar que ao menos a ideia cidadania aparece diluída, por um lado nas adjetivações da palavra liberdade, que aparece 16 vezes na Declaração e está presente em 08 artigos. Liberdade está associada, na maioria das vezes, à liberdade de pensamento, locomoção, consciência, religião, opinião, expressão, segurança pessoal e residência. Por outro lado, a palavra direito, como era de se esperar, aparece na Declaração 47 vezes e está presente em quase todos os artigos, à exceção de dois deles. Para a palavra direito, os adjetivos são: direito à instrução, segurança, repouso, lazer, organização política, trabalho, acesso a serviços públicos, bens culturais, segurança social, propriedade, liberdade e participação no governo, dentre outros.


Para ser mais explícito, tomo como um elemento importante a questão da cidadania por que na Declaração encontramos, em minha avaliação, uma concepção ainda muito informada pelo individualismo e, nessa perspectiva, o suporte aos direitos humanos se fez fundamentalmente calcado nos direitos e nas liberdades individuais. A forma pela qual a URSS equacionou a questão dos deslocados de guerra nas regiões sob sua influência, por sua vez, expressava, do ponto de vista do ocidente, a negação de direitos humanos fundamentais.


Até junho de 1949, 418.271 pessoas permaneciam em campos de refugiados na Alemanha e Áustria. Destes, pouco mais de 104 mil eram judeus de diversas nacionalidades, 113.900 eram poloneses, 93.686 eram oriundos da Letônia, Estônia e Lituânia, 60.342 eram ucranianos e 21.271 eram iugoslavos.


Em 1948 foi formada uma comissão mista Brasil - O I.R. (decreto 25.796 de 10-11-1948), a partir da qual o governo brasileiro comprometia-se a receber uma quota de refugiados de guerra, embora o país já os recebesse desde 1947. Um artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo na edição de 5-7-1947, intitulado A tragédia dos deslocados, encontramos a informação de que o governo brasileiro intencionava receber cerca de 700.000 refugiados de guerra.9 Dados de 1949 demonstram que chegaram ao país pouco mais de 19.000 imigrantes, e as cifras até 1951 não apontam mais do que 25.000 imigrantes, classificados como refugiados ou deslocados de guerra.


Mesmo não cumprindo sua quota, o governo brasileiro deu visibilidade à questão da recepção dos refugiados, seja com a publicação de artigos em revistas e boletins como os do Departamento de Imigração e Colonização, ou com matérias veiculadas em jornais. Num deles, denominado A Elite Esquecida, há um capitulo cujo título é: Vantagens econômicas e práticas ao empregar um DP 10 especializado. A tônica foi a propaganda sobre o perfil especializado de muitos dos refugiados, e, obviamente, seu potencial de trabalho para os países que quisessem recebê-los. Há uma primeira parte que trata das biografias de alguns desses refugiados e sua contribuição nas diversas áreas das ciências, artes e economia em seus respectivos países de origem.11


O fluxo emigratório provocado após o término do conflito e seu potencial econômico já havia sido identificado desde os primeiros anos da década de 1940.

A presente guerra, como todas as grandes guerras, com o deslocamento dos centros industriais que elas trazem, necessariamente, consigo (...) provocará correntes de migração cujo volume dependerá, em primeiro lugar, mas não exclusivamente, das portas fechadas ou abertas dos países de destino. (...) O centro de gravidade da economia mundial passará, ao que parece, da Europa para a América. (...) Isso não pode ficar sem influência sobre o caráter desse Continente, como, virtualmente, um escoadouro central para a imigração de outros continentes e, em particular, da Europa.12



Nesta avaliação, a absorção dos contingentes egressos da Europa, seria possível na medida em que houvesse uma nova reorganização econômica em nível mundial, e particularmente, no caso do continente americano, uma mudança na vocação econômica de algumas nações. Do ponto de vista político, essa realocação foi considerada fundamental para o distencionamento social e estabilidade política na Europa do pós-guerra, dada a avaliação de que a reconstrução econômica do continente não se realizaria a curto prazo.


As atividades da O.I.R. em São Paulo foram coordenadas pelo Serviço de Imigração e Colonização e logo depois transferidas para o Departamento de Imigração e Colonização. Em São Paulo, estes refugiados ficavam alojados na Hospedaria de Campo Limpo, próxima à Capital, para depois serem encaminhados para o seu local de trabalho. Esta Hospedaria ocupava antigos galpões que serviam de depósito de café, e funcionou até o início dos anos 1950.13 A Hospedaria de Imigrantes, situada no bairro do Brás em São Paulo, esteve neste período ocupada pela Escola de Aeronáutica, sendo devolvida à Secretaria da Agricultura somente em 1951.


A partir de 1951, as atividades da O.I.R. foram paulatinamente reduzidas, como reflexo do fim da recolocação dos deslocados de guerra que viviam nos campos de refugiados na Alemanha e na Áustria. Um acordo entre o governo brasileiro e o Comitê Intergovernamental para Migrações Européias (C.I.M.E.) - que substituiu a O.I.R. - manteve o fluxo para o país de uma imigração voltada para a inserção nas atividades industriais.


Nos anos 1950 tivemos uma mudança na dinâmica da imigração para São Paulo. Trabalhadores considerados especializados foram agregados - durante as décadas de 1950, 1960 e 1970 - como mão-de-obra para o crescente parque industrial paulista. Oriundos principalmente da Europa e Japão, a entrada desses imigrantes nos aponta para uma nova reorganização da Divisão Internacional do Trabalho, na medida em que, para além do fluxo de trabalhadores houve, igualmente, investimentos significativos de companhias estrangeiras em diversos ramos da economia, como os setores automobilístico, químico e farmacêutico, siderúrgico e de transportes.


No âmbito geopolítico, as relações internacionais no pós II Guerra, marcadas pela hegemonia dos Estados Unidos e da União Soviética, engendraram interdependência político-econômica entre os Estados que compuseram os blocos, definindo o campo da contenda durante a guerra fria. No bloco capitalista, processos de integração econômica reforçaram os vínculos de dependência entre as economias centrais e consideradas em fase de desenvolvimento. A transnacionalização das economias periféricas consolidou uma hierarquia no processo de integração do bloco, ao passo que reforçou sua coesão e identidade política frente ao bloco socialista.


Considerações Finais


Do ponto de vista político, a imigração de deslocados e refugiados de guerra para o Brasil no período 1947-1951 representou uma estratégia de apropriação da história do país, particularmente no que se referia à sua tradição de acolhimento ao estrangeiro. Esta releitura de nossa história atribuía ao Brasil características de uma realidade social e econômica de tradição nos processos de recepção e assimilação de estrangeiros, e como um lugar de tolerância cultural e política. Ao mesmo tempo, num ambiente internacional marcado por processos de exclusão e intolerância, o país abria suas portas para a absorção de imigrantes com perfil profissional adequado ao esforço de modernização de nossa economia.


A imigração nesse período deve ser analisada, portanto, num contexto no qual, por um lado, os acordos políticos celebrados entre o governo brasileiro e as organizações multilaterais de alocação realizavam-se num ambiente de intolerância política que necessitava ser equacionado. Por outro, as necessidades de reorganização e articulação econômicas do bloco capitalista engendrava um ambiente agregador desses sujeitos. Há que se ressalvar, porém, que a política imigratória não se efetivou a partir de um projeto pronto e definitivo e, por isso, produziu descompassos entre uma história e movimentos de articulação políticos e econômicos gestados no plano internacional e a realidade brasileira.


De fato, a recepção de mão-de-obra qualificada em São Paulo até princípios dos anos 1950 respondeu às necessidades de crescimento econômico apenas no discurso dos técnicos e agentes governamentais inseridos diretamente com a questão da imigração. Na prática, verificamos o oposto. Em vários processos da Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo encontramos pedidos de informações sobre as possibilidades de colocação nas indústrias paulistas entre os anos 1945 e 1948. Engenheiros e técnicos dos ramos metalúrgico, elétrico e mecânico de diferentes nacionalidades (franceses, belgas, italianos e alemães) tiveram seu pedido apenas anotado para posterior contato.


A imigração de trabalhadores qualificados para São Paulo, em seu início, foi motivada, primordialmente, por acordos entre o governo brasileiro e organismos multilaterais, sem considerar a situação do mercado de trabalho naquele momento. As correspondências dos técnicos da Secretaria da Agricultura apontavam para uma realidade diferente da que era anunciada pelo governo brasileiro, no que se referia às possibilidades de inserção de trabalhadores imigrantes no país.


Esta tensão revelava, na sua presença, uma ausência: o esgotamento do modelo de desenvolvimento engendrado nos anos 1930, e os dilemas da incorporação da economia brasileira no contexto global pós II Guerra Mundial. Economia esta, periférica do ponto de vista de sua relação com os Estados Unidos e a princípio, em menor grau, com a economia europeia; apresentava-se como mais uma área propensa aos movimentos de expansão e concentração da economia capitalista.


A questão da inserção de imigrantes no Brasil no período era, portanto, complexa, e não podia ser resumida à disponibilidade de trabalhadores na Europa e à necessidade de absorção dos mesmos nas indústrias paulistas. As consultas visando informações sobre possibilidades de inserção no mercado de trabalho urbano-industrial (enviadas entre os anos 1945-47) obtiveram, quando muito, respostas vagas de encaminhamento a possíveis empregadores no Brasil.


Assim, a política imigratória representava mais do que uma alternativa para o atendimento das necessidades de modernização do parque industrial. Embora acordos bilaterais de emigração/imigração permanecessem no período como expressões da política imigratória brasileira - particularmente com relação à imigração portuguesa - as relações do governo brasileiro com organismos multilaterais expressaram a inserção necessária da economia de base industrial no país junto a outros governos, organismos de financiamento e capitais transnacionais. A chegada dos novos imigrantes foi resultado de um complexo jogo de interesses que empreendeu um esforço poli-coordenado que auxiliou a expansão da base industrial capitalista nas áreas sob a hegemonia do bloco ocidental.


Ocidente e Oriente expressaram, na realocação de pessoas após o conflito, uma questão ainda candente e fundamental na problemática dos Direitos Humanos. A alternativa autoritária - se assim podemos chamar - da União Soviética no trato com a questão e a alternativa democrática do Ocidente no mesmo sentido, apontam para os limites e desafios para pensarmos as questões migratórias no pós II Guerra Mundial. Entre o coletivismo e o individualismo, como posicionar os Direitos Humanos? Numa perspectiva coletiva, o direito dos judeus de migrar para a Palestina e constituírem um Estado não negou o direito dos palestinos em constituir um Estado, e portanto ter garantido um direito humano que é o direito a ter uma nacionalidade?14


Numa perspectiva individual, homens e mulheres têm o direito de migrar? Migrar é um direito Humano? O migrante tem o direito de amparo de suas necessidades em coletivos estrangeiros? O que presenciamos na atualidade é expressivo desta questão. Os quase campos de concentração para pessoas que decidiram migrar, para pessoas que perderam seus territórios ou para pessoas que são um perigo à segurança global, campos esses presentes na Europa, Oriente Médio ou Guantánamo não ferem o artigo V da Declaração Universal dos Direitos Humanos que reza "Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante". Entre o individual e o coletivo, a questão dos refugiados no pós Guerra colocou um problema que permanece em aberto como um desafio cada vez mais presente na atualidade.


Por fim, quero salientar que os deslocamentos populacionais no pós II Guerra têm testado nossa capacidade em reconhecer no outro a humanidade. As migrações, como já afirmava Abdelmalek Sayad, são portadoras de radicalidades e, como tal, testam nossa capacidade de tolerância frente ao que é diferente, estrangeiro. Elas nos lembram a todo o momento que a experiência humana se faz no migrar. Só nos denominamos como humanidade por que um dia um grupo de pessoas deixou a África e se espalhou por todos os lugares do planeta, produzindo culturas e também subjetividades. Cultura e subjetividade apontam para dimensões importantes do humano que poderíamos ler como coletivos e individualidades. É neste binômio, por vezes tenso e contraditório, que experenciamos nossa humanidade e os limites e desafios da tolerância em nossos trabalhos, na atuação na sociedade e no próprio Laboratório.

 

 

1 Dentre os organismos multilaterais criados para auxiliar o deslocamento de populações pós II Guerra Mundial, destacaram-se a U.N.R.A.A. (Administração de Assistência e Reabilitação das Nações Unidas) entre 1945 e 1947, O.I.R. (Organização Internacional para Refugiados) entre 1947 e 1951 e posteriormente o C.I.M.E. (Comitê Intergovernametal para as Migrações Européias), a partir de 1951 até a década de 1980. Para informações mais pontuais sobre o C.I.M.E., ver: FULLER, Warren Graham. O Comitê Internacional para Migrações Européias (CIME) e a Seleção de Mão-de-Obra Estrangeira. In: Conferência Promovida em Comemoração ao X Aniversário do SESI pelo Conselho nacional das Indústrias e a Divisão de Coordenação do SESI. S/l, out. 1956; SILVA, Celso A. de Souza. O Brasil e os Organismos para Migrações. In: Revista Brasileira de Política Internacional. S/l, 1958. O recorte temporal aqui evidenciado relaciona-se também com o início e o término da produção documental sobre a imigração no pós-guerra que está depositada no acervo do Memorial do Imigrante e que percorre os anos 1946-1981. Para um detalhamento dos grupos documentais do acervo do Memorial do Imigrante ver: PAIVA, Odair da Cruz. Introdução à História da Hospedaria de Imigrantes em seus aspectos Institucionais e guia do Acervo. São Paulo: Memorial do Imigrante/Museu da Imigração, 2000 v.1, 20 p. (Série Resumos n.6).

2 Em São Paulo, este processo incidiu sobre áreas até então ocupadas por pequenas fábricas, chácaras e olarias que produziam gêneros para o abastecimento da cidade de São Paulo. Regiões próximas à capital como Osasco (oeste), São Miguel Paulista (Leste) e a região sudeste - que seria conhecida como ABC - sofreram um novo processo de ocupação e de mudança de sua identidade econômica, e transformaram-se nos anos 1950/1960 em áreas de grande concentração industrial.

3 Ainda nos anos 1930, surgiu a preocupação com o crescente número de refugiados na Europa e sobre as possibilidades de sua realocação. Segundo dados da Liga das Nações, em 1935 havia aproximadamente 970.000 refugiados na Europa, dos quais a grande maioria era composta por alemães, russos, judeus alemães e republicanos espanhóis. O avanço dos regimes totalitários na Alemanha, Itália e Áustria e a tomada do poder pela direita na Espanha, foram os fatores responsáveis pelo deslocamento de uma população que, de forma compulsória, procurou refúgio em países como a França, Inglaterra e Holanda. (TRAFT, Donald R.A. (1935) A Study of International Movements. New York, The Ronald Press Company, 1936. Monthly Summary of the League of Nations. Sept.) A eclosão da II Guerra Mundial contribuiu para elevar sobremaneira o número de refugiados e tornar mais dramática a situação destas populações.

4 Ole Just (1948). Faz menção a cifra de 14 milhões de refugiados. Ver: Au dessus des mers et des frontiéres. Le grand mouvement migratoire de notre siècle - bases démographiques et economiques de la féderation occidentale. Rio de Janeiro. Organização Cultural Vida. Já Estanislau Fischlowitz aponta para a existência entre 60 e 70 milhões de refugiados tanto na Europa quanto na Ásia. Ver: O Problema Internacional das migrações e a paz futura. Revista de Imigração e Colonização. Ano IV n. 4, dez. Ministério das Relações Exteriores. Conselho de Imigração e Colonização. Rio de Janeiro, 1943.

5 Esta questão está apontada em: PAIVA, Odair da Cruz. Refugiados de Guerra e a Imigração para O Brasil nos anos 1940 e 1950. Revista Travessia. Ano XIII, n. 37 mai/ago de 2000, p.p. 25-30.

6 Idem, ibidem

7 O.N.U. O Problema dos Refugiados. Rio de Janeiro: O.I.R., 1950.

8 Idem, ibidem.

9 Artigo assinado por Paul Vanorden Shaw e também publicado na Revista de Imigração e Colonização. Ano VIII, set. de 1947, n.3. Ministério das Relações Exteriores. Conselho de Imigração e Colonização. Rio de Janeiro, Brasil.

10 Abreviação de Displaced Person. Fonte: O.N.U. A Elite Esquecida. Rio de Janeiro: O.I.R. s/d.

11 Dentre as biografias, estão: veterinário, agrônomo, cirurgião, patologista, bacteriologista, farmacêutico, bioquímico, físico, químico, geofísico, astrônomo, arquiteto, engenheiro, agrimensor, professor, etc.

12 FISCHLOWITZ, Estanislau. Op. Cit. Grifos nossos.

13 Os registros desses imigrantes estão depositados no acervo do Memorial do Imigrante - SP.

14 Artigo XV 1) Todo homem tem direito a uma nacionalidade. 2) Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.