Autor
Adriana Marcolini
Ano
2005
Área do Conhecimento
História Contemporânea
Área Específica
Antiga Iugoslávia
Resumo / Abstract

Entrevistas com intelectuais sérvios sobre o período Milosevic, as guerras dos anos 1990, a possível reconciliação entre os povos da antiga Iugoslávia, o nacionalismo, os criminosos de guerra, a Justiça de transição no período do pós-guerra.

Segunda parte da entrevista concedida pela dramaturga Borka Pavcevic, diretora do Centro de Descontaminação Cultural, em Belgrado, ao Laboratório de Estudos da Intolerância.

Publicação

Centro de Descontaminação Cultural combate o nacionalismo e a intolerância na Sérvia **

Instituição fundada em 1994 desponta como um baluarte da tolerância e da convivência étnica na antiga Iugoslávia

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Adriana Marcolini

de Belgrado

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A seguir, a segunda parte da entrevista concedida pela dramaturga Borka Pavcevic, diretora do Centro de Descontaminação Cultural, em Belgrado, ao Laboratório de Estudos da Intolerância:

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 Foto de Adriana Marcolini

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Pergunta: A Sérvia está passando por um momento delicado, particularmente em 2007, quando o status de Kosovo deverá ser finalmente definido. Tudo isso acontece com um governo nacionalista no poder. O Centro de Descontaminação Cultural tem uma posição em relação aos acontecimentos atuais?

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Resposta: Nosso trabalho não consiste nisso. Acredito que a dissolução da Iugoslávia continuará e onde isso terminará, este é um problema para as autoridades de Bruxelas. Este governo é nacionalista. Nós não apoiamos a influência da Igreja na sociedade, somos favoráveis ao Estado secular e somos contra o nacionalismo. Acho que esta é a única posição em que a democracia pode crescer. E para a cultura esta é uma questão muito importante. Certamente, este é um momento delicado, porque algumas coisas não podem ser resolvidas com a guerra. A promotora do Tribunal da ONU para a ex-Iugoslávia, Carla Del Ponte, está hoje em Belgrado. A palavra ‘entreguem’ os criminosos de guerra me deixa doente, uma vez que, no ano 2000, deveríamos dizer que os responsáveis e culpados devem ir para o Tribunal para fazer frente à Justiça e não porque os Estados Unidos e a Europa estão nos pressionando para fazer isto. O fato de não estarmos fazendo isso por nossa própria conta sem a pressão externa, e não apenas isso, mas também outras coisas, isto é algo que deve deixar as pessoas envergonhadas. Este é um jogo complicado, porque muitos problemas não são resolvidos. Não se pode saber se os radicais e os nacionalistas vão crescer mais ainda, mas este é um problema conhecido na história. Às vezes fico impressionada de ver que não somos apenas nós que não reconhecemos o que está acontecendo, mas todo surgimento de um novo Estado tem um caráter repressor e é baseado na unidade. Isto implica em posições desagradáveis para os outros. Por que somos autorizados a formar a nossa identidade com base no ódio em relação aos outros? E, certamente, os outros estão fazendo o mesmo. Penso que teremos aqui a reconstrução dos valores sobre os quais é importante construir a própria vida. Este é o nosso trabalho. 

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Pergunta: A senhora pensa ser possível haver reconciliação?

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Resposta: Esta é uma palavra muito usada e eu não gostaria de repetir, mas acho que isto pode acontecer quando os crimes de guerra forem punidos. É preciso mostrar para as pessoas que o crime não é útil, qualquer tipo de crime. A guerra dá origem a outros tipos de crime, como roubos e mentiras. E as conseqüências na vida quotidiana são grandes. Ou seja, primeiro é preciso haver a Justiça, depois pode se trabalhar no sentido da reconciliação. Não quero dizer que tudo será como antes, porque sou a favor da antiga Iugoslávia, aquele era o meu país. Hoje, na medida do possível, tento trabalhar como se essas fronteiras não existissem. Sei quem levou o país a essas guerras. Naturalmente, sei que uma boa parte da população desses países é formada por pessoas normais, que gostariam de levar uma vida normal e de   viver juntas. Por motivos econômicos e culturais, os Estados pequenos não são boa opção.

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Pergunta: Durante a guerra na Bósnia, aqui na Sérvia havia a TV estatal, que mostrava apenas o que o governo central de Belgrado queria que fosse visto, enquanto os jornais locais ignoravam a guerra. De acordo com o que me relataram alguns sérvios, apenas poucas pessoas em Belgrado dispunham de TV por via satélite naquela época e a internet ainda estava nascendo.  Como as pessoas na Sérvia podiam acompanhar a guerra na Bósnia? Elas tinham conhecimento do que estava acontecendo?

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Resposta: É uma questão histórica muito complexa e não acontece pela primeira vez. As pessoas na Alemanha sabiam dos campos de concentração? Cito o caso da Alemanha apenas como uma ‘inspiração’ para a sua pergunta, porque, é lógico, não é a mesma coisa, a época não é a mesma, tudo é diferente. Aqueles que quisessem saber podiam fazê-lo. Penso que muitas pessoas em Belgrado sabiam o que estava acontecendo. A cada duas famílias daqui, uma tem alguém em Sarajevo, se não for um parente, é um amigo ou um conhecido. Quantas pessoas do Teatro Nacional de Belgrado estiveram, durante anos, no Festival de Teatro de Sarajevo? Quantas pessoas (de Belgrado e Sarajevo) se conheciam? Quantas pessoas de Belgrado tenham talvez sido hóspedes de alguém em Sarajevo ou estudaram lá? Isto é algo surpreendente e, certamente, a sua pergunta é totalmente relevante, mas há tantas respostas históricas para isto! Há um grande livro sobre este tema de um professor sul-africano, Stanley Cohen, The Status of Denial.  Se você comparar o que ele reuniu do processo de Nuremberg e dos processos na África do Sul, ao Tribunal Penal das Nações Unidas para a ex-Iugoslávia (TPI), terá sentenças semelhantes: “Eu não sabia, eu não tinha conhecimento disso, isto não é da minha responsabilidade, achava que fosse um exagero.” Ou seja, é assombroso. Fiquei espantada quando li as explicações que ele reuniu, típicas das pessoas que vivem em contextos próximos ao crime.

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Pergunta: E as mães cujos filhos eram soldados no Exército?  

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Resposta: Eu também me faço esta pergunta freqüentemente. A guerra tem um mecanismo que faz você mentir para si mesmo e pensar que nunca vai acontecer nada com você. Há uma canção de um pastor alemão que diz o seguinte: “Eles prenderam os judeus e eu não me preocupei porque eu não era judeu; eles prenderam os comunistas e eu não me preocupei porque não era comunista; então eles vieram à procura dos sindicalistas, mas eu não me preocupei porque não era um sindicalista; então eles vieram e me prenderam, mas ninguém pode falar sobre isso.” Ou seja, você pode dizer que isso é conformismo ou que é medo. Sim, também havia o medo. Porque a vida que as pessoas levavam não era normal, a partir de 1991 não era mais uma vida normal. Também dependia se você acreditasse ou não que este país que  antes existia era a sua terra natal. Eu me sentia neste país como uma iugoslava e estava numa posição muito ruim porque, para mim, era a mesma coisa se alguém fosse de Sarajevo, ou de Zagreb ou de Dubrovnik. Aqui havia sanções econômicas, de alguma forma o país estava fechado, as pessoas precisavam tentar sobreviver.

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Pergunta: A sociedade sérvia de hoje está se confrontando com o que aconteceu?

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Resposta: Algumas pessoas sim e esta também é uma grande questão política. Temos o Tribunal Penal da ONU para a ex-Iugoslávia, por exemplo. Penso que era preciso mudar, depois do ano 2000, quando houve a chamada revolução (quando, após não aceitar a derrota nas eleições presidenciais, em outubro de 2000, Milosevic teve de deixar o poder, sob forte pressão popular). A nossa chamada revolução não aconteceu sob a forma clássica, ou seja, não houve uma data determinada na qual se anunciou: ‘OK, agora está tudo terminado.’ Portanto, alguns de nós afirmam que, na verdade, não houve uma descontinuidade. Nenhum dos que ascendeu ao poder diz: ‘Ouçam, fomos derrotados.’ No dia 5 de outubro de 2000, eu esperava que Vojslav Kostunica (o candidato que venceu as eleições presidenciais) fosse entrar no Parlamento e dizer: ‘Bom dia, sou o vosso novo presidente, tenho de dizer a vocês que tudo terminou, agora precisamos admitir que os esforços de guerra provocaram um estrago enorme, precisamos reconhecer que as leis do período de Milosevic, que governava sob um regime de guerra, destruíram tantas vidas. Vocês votaram para isso, certo?’ Não houve uma catarse, usando um termo do teatro. E quando as medidas não são tomadas no momento certo, as conseqüências são graves. Trata-se de uma sabedoria histórica. Quando você hesita, a situação se prolonga. Se isto acontece, as coisas podem piorar e ter duas faces. Quando o nosso ex-primeiro-ministro Zoran Djindic foi assassinado, em 2003, percebi que as situações estão se prolongando, e agora temos tudo isso à mesa, toda essa história, essa vida contemporânea que inclui a história. Não estamos desenterrando, cavando a história, ela está voltando sozinha, sem ajuda. E isto não é imaginação.

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Pergunta: O que a senhora pensa sobre a mudança dos nomes das ruas em Belgrado?

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Resposta: Os nomes do período comunista estão sendo mudados, porque com a dissolução da Iugoslávia se passou a dizer que os partisans estavam errados, e isto é um grande erro. A Iugoslávia foi um dos países vencedores da Segunda Guerra, Tito sentou-se ao lado de Stalin e Roosevelt, porque tivemos um movimento cívico de resistência ao fascismo, os partisans. Fomos um dos vencedores e hoje a Sérvia é um país perdedor. O país foi desmembrado, e o que se faz para ficar livre da história antifascista? Mudam-se os nomes das ruas, por exemplo. E quando se rompe com a experiência da Segunda Guerra porque foi uma experiência comunista, se está então rompendo com os principais valores deste país.

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Pergunta: Mas não é possível simplesmente apagar o passado, certo?

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Resposta: Mas é o que está acontecendo com a mudança dos livros de história, com a mudança da abordagem em relação à história, com a influência da Igreja ortodoxa, que participou das guerras dos anos 1990. Como é possível explicar essas guerras se não se rompe com a possibilidade do povo iugoslavo de viver junto? Como se pode explicar a separação? Na Segunda Guerra estávamos todos juntos lutando contra os nazistas. Isto era a Iugoslávia e se este país é dissolvido, é preciso explicar ideologicamente a razão. É isto o que se pode ver nos filmes, na TV e em todos os lugares. Então a antiga Rua Jozef Broz Tito hoje se chama Rua Kralja Milana (Rei Milan), e a Rua Lola Ribar, um grande intelectual antifascista de origem burguesa, atualmente leva o nome de Svertogorska (o nome de um santo). A mudança de nomes das ruas vem acontecendo após o ano 2000, porque queremos dizer que somos pró-ocidentais, que somos uma sociedade pequeno-burguesa e que somos sérvios. Sempre houve aqui vozes argumentando que a Iugoslávia era ruim para o povo sérvio, enquanto na Croácia também houve os que afirmavam que a Iugoslávia era ruim para os croatas. Diziam que todos seriam felizes em seus Estados independentes. Tudo começou em 1991 com a independência da Eslovênia e da Croácia, que infelizmente foram reconhecidas pelas nações estrangeiras. Atualmente muitas pessoas afirmam que as coisas eram melhores antes, mas isto é uma simplificação histórica, porque nada pode ser hoje como era antes. Mas atualmente muitas pessoas dizem que Tito era um grande homem. Os sérvios nacionalistas chamavam sempre Tito de austro-húngaro, porque ele era croata. De certa forma, o movimento cívico de resistência durante a Segunda Guerra reuniu todos e agora rompemos, quebramos isto. Temos o caso da Bósnia, onde os diferentes povos viveram 400 anos juntos e agora é preciso estabelecer a vida normal, tal como ela era anteriormente. Este é o paradoxo da Iugoslávia: fomos outrora uma pequena União Européia. Pobres, problemáticos, mas de alguma forma as pessoas viviam juntas. De repente, tudo isso acabou...