Hamilton Rangel Júnior*
1. Introdução
Procuraremos, na informalidade desse nosso encontro, a partir de uma metodologia pragmática, abordar uma necessidade atual, quando a temática são as liberdades públicas: a desbanalização dos direitos humanos. Sabemos todos que direitos humanos são o conjunto de responsabilidades técnicas disponíveis, indisponíveis e éticas que a comunidade internacional consagrou e as ordens jurídicas internas encamparam, sobre como fornecer o essencial ao homem, do ponto de vista espiritual, material, social e institucional. Contudo, nosso enredo diário e toda a festa midiática acabam distorcendo o que seriam as responsabilidades práticas, na consecução dos direitos humanos, ou seja, o que devemos todos inserir em nosso cotidiano, à guisa de tornar quase instintiva a conduta jus-humanística: responsabilidades de natureza conceitual, responsabilidades de natureza lógica e responsabilidades de natureza linguística.
Essa metodologia e esse objeto foram os que nos ocorreram, na busca por uma didática do razoável, para alcançarmos um nível de reflexão que nos conduza a alguma lucidez, no trato do tema, sob pena de naufragarmos, antes do embarque em uma cultura de efetividade da dignidade humana.
2. As responsabilidades de natureza conceitual
Do ponto de vista conceitual, eu não tenho dúvidas de que nós precisamos, de uma vez por todas, inaugurar uma fase em que o conceito de direitos humanos saia do misticismo, da teologização, do confessionalismo. Pois, direitos humanos não têm absolutamente nada com solidariedade, com caridade, com ser bacana, ser uma pessoa do bem. Até para os ateus, direitos humanos são, como apresentado na introdução, responsabilidades que temos conosco e com o outro, mesmo que dele não gostemos. É fundamental que nós saibamos conviver com a diferença sem confundir essa postura com fé, ou com prazer. Estamos falando de não fugirmos ao dever de sermos civilizados, respeitarmos o outro como ele é, e lutarmos para que ele seja digno, porque a indignidade dele é uma marginalidade e a sua marginalidade vai gerar um problema social, problema social pelo qual o Estado paga e que faz que, por exemplo, não sobre verba para o hospital público, resultando que você tenha de esperar meses para dar início a um tratamento de câncer, pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
E não apenas o conceito de direitos humanos, mas os conceitos de que os direitos humanos cuidam devem ser revisitados. Não confundirmos, por exemplo, preconceito com discriminação é outra necessidade desmistificadora. Preconceito é forma de ignorância, é exercício ruim da liberdade de consciência. Dizer que preconceito é crime é como chegar para um analfabeto e dizer que é crime ele não saber ler. Preconceito você não elimina com repressão, você o elimina com educação, com formação, com demonstração de modelos, com formação de opinião. Já, discriminação é algo mais sério; discriminar alguém é injustamente privá-lo de exercer um direito: você impedir uma pessoa de freqüentar um teatro, por falta de rampa para a cadeira de rodas; você impedir uma pessoa de freqüentar uma escola, porque ela tem um comportamento sexual diferente do tido como convencional e está sendo objeto de chacota dos colegas etc.
Trago à lembrança o debate sobre cotas para negros, nas universidades públicas. Uma rápida lida dos autores norte-americanos estudiosos das ações afirmativas e veremos que baixar o critério de seleção para favorecer o acesso de uma categoria social às universidades é, além de discriminatório com as demais categorias - em nada responsáveis pela vulnerabilidade social presente de alguns -, é socialmente gerador de acirramento odioso nas relações humanas. Assim, só cabe falar-se em quotas, se o critério meritório de ingresso for o mesmo, restando apenas a disputa da vaga para ser promovida entre os membros de uma mesma categoria, exatamente como a legislação determina para o ingresso de deficientes no serviço público (art. 2° da Lei Complementar 683, de 18/09/92). Isso vai ao encontro do real conceito de ação afirmativa: integração com equidade.
Tenho claro que, a prosseguirmos na linha conceitual distorcida, tudo quanto conseguiremos será eternizar o debate e obstruir a evolução.
3. As responsabilidades de natureza lógica
O mundo dos profissionais do Direito, ao qual pertenço, quando descuidado, desatento, cai facilmente na armadilha de passear por dois campos paralelos e de grande barulho: ou é o campo do achismo, o espetáculo de se dar palpite sobre o que não se domina, do bedelho em áreas que não são da especialidade do interlocutor; ou, então, é o campo do mau-caratismo jurídico, aquela história de professor que diz que algo só é crime dependendo de se você está na acusação ou na defesa, de advogado que chega para o estagiário e diz que a teoria é uma coisa e a prática é outra, de juiz que não concede habeas corpus à meretriz, por entender que o direito de locomoção não pode ser usado para o pecado. São duas posturas que perfazem o maior desserviço para os direitos humanos, já que, sob a alegação de um suposto realismo, espancam, à morte, a lógica do direito.
A lógica do direito não tem nada com palpitismo ou mau-caratismo. O direito é um fenômeno lógico, como a vida é um fenômeno lógico. Não me refiro, aqui, à lógica formal insípida e inconsequente; falo da dialética, a lógica que embute no seu processo de coerência de ideias um balde de sensibilidade humanística multidisciplinar e multifária. É a lógica que, a partir da contradição, gera a complementaridade de ideias e valores, fazendo, na esteira de Reale, que a diversidade humana conviva, prevenindo conflitos e eliminando os que existem.
E, no silogismo que introduz o embate dialético, no Direito, a premissa maior é a hermenêutica sensível do ordenamento, a partir da Constituição. Ela é o ponto de partida, não a nossa opinião, nossa crença, nosso gosto. Ser ou não a favor da legalização do aborto está relacionado, então, não com o fato de sermos evangélicos, católicos, agnósticos, ou céticos; mas está exclusivamente ligado à interpretação de um ordenamento que prevê que a vida é um direito subjetivo público (leia-se: pertence ao Estado - tanto que ele autoriza que ela seja tirada do feto sadio que tenha sido gerado por estupro, por exemplo, ou que matemos outrem, em legítima defesa). Ora, se a vida é do Estado e a proibição de que se abortem fetos indesejados gera para o Estado um ônus social retratado no índice elevado de abortos clandestinos e as mutilações de mulheres disso decorrentes, o que a lógica do direito determina, em a premissa maior sendo uma Constituição que atribui ao Estado a responsabilidade objetiva pela integridade física e moral da pessoa humana? Detalhe: quem fala é alguém cuja convicção religiosa o faz totalmente avesso às práticas abortivas - mas não é a minha fé que está em discussão.
4. As responsabilidades de natureza linguística
Nós, brasileiros, somos de uma cultura absolutamente sensorial, nada academicista. A nossa característica é absorver tudo pela comunicação, pelo contato, pelo visual, pelo cheiro, pelo som - é um jeito diferente de ver o mundo. Assim, a linguagem a que damos mais e melhor atenção não é o discurso da norma, político-institucional, nem tampouco o discurso da ciência, literário-doutrinal, nem mesmo o discurso judicial, forense; damos ouvido mais atento ao discurso de massa. A linguagem que nos toca e convence é aquela que é transmitida com trilha sonora, roteiro e cenário. É a identidade deste povo. É o que determina que a opinião da Hebe Camargo tenha mais repercussão que os julgados do Supremo Tribunal Federal; é o que faz que a presunção de inocência não valha nada, enquanto telejornais apresentarem, com requintes de showbusiness, o rosto, a família e residência de meros indiciados como se culpados fossem, induzindo a opinião pública em erros como tentativas de linchamento etc.
Os direitos humanos precisam invadir a mídia; melhor: precisamos nos adequar a linguagem, para que, na concorrência, tenhamos mais audiência do que a mídia mal-informada. Temos de aprender a não mais apenas debater os meandros sócio-poltíco-jurídico-rebuscados das liberdades fundamentais e aprendermos a sensibilizar as emoções e corações da nossa gente.
Acrescente-se, ainda, que se desenvolveu uma ideologia de que a linguagem gera realidade e, por isso, só o fato de mudarmos o nome das coisas, elas desaparecem. Esse equívoco do politicamente correto, que é um outro nome para policiamento de consciências, gera esquizofrenias que ridicularizam o debate e atrasam as conquistas. Senão, vejamos: qual a transformação que o mundo sofre, quando, em vez de deficiente, referimo-nos ao indivíduo como pessoa portadora de necessidades especiais, além de, apenas, levar-se mais tempo para ouvir-se o final da frase?; onde se viu que a expressão a coisa vai ficar preta tem viés racista, a não ser que alguém esteja confundindo a pessoa humana com coisa, ou imaginando que o ouvinte dessa expressão seja intelectualmente minúsculo, para confundir a metafórica pretitude da coisa com a étnica negritude do homem?
Ou seja, além de não termos audiência, ainda zombamos da inteligência dos poucos espectadores que nos assistem.
5. Conclusões
Se nós refizermos a leitura sobre essas três responsabilidades práticas, em favor da efetividade dos direitos humanos - a responsabilidade conceitual e desmistificadora, a responsabilidade lógica, a partir da interpretação do Ordenamento Constitucional, e a responsabilidade linguística, indo às massas e nos alforriando dessa subversão esquizofrênica do politicamente correto, que banaliza os temas e torna tudo absolutamente risível, certamente nós conseguiremos evoluir imensamente na defesa da dignidade humana, na convivência da diversidade, numa sociedade que não vai ser livre por ser justa, mas que vai ser justa e livre independentemente de uma coisa ter que ver com a outra.
* Graduado em Direito, pela Universidade de São Paulo – USP. Doutor, cum laude, em Direito pela Universidade de São Paulo (MEC/USP 052191). Assessor Científico da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/SP (nov./1999 a dez./2001). Professor de disciplinas propedêuticas (Filosofia Jurídica, Ética, Introdução à Ciência do Direito, Ciência Política, Lógica, Hermenêutica e Linguagem Jurídicas) e profissionalizantes (Direitos Constitucional e do Consumidor). Chefe de Gabinete da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo - SJDC