Entrevista Prof José Kagabô à Revista Brasileiros

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Duvidosa ideia de uma barbárie cega

Em 100 dias, 800 mil pessoas morreram em Ruanda. O episódio, ocorrido entre abril e agosto de 1994, ainda é exemplo de omissão de potências internacionais. Em entrevista à Brasileiros, o historiador ruandês José Kagabo, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, explica os motivos

29/01/2015 9:18

O Historiador Franco-Ruandês José Kagabo, na USP - Foto: Luiza Sigulem

O Historiador Franco-Ruandês José Kagabo, na USP – Foto: Luiza Sigulem

Os fatos que marcaram 1994… Dê um Google e você vai encontrar rapidamente, entre outros assuntos, a morte de Ayrton Senna, o Plano Real, os escândalos sexuais de Bill Clinton, a Copa do Mundo nos Estados Unidos, em que o Brasil foi tetracampeão. Vai achar também todos os detalhes da guerra na Bósnia, que começou em abril daquele ano, durou três anos, só terminando em dezembro de 1995, e tomou proporções internacionais devido ao número de vítimas – cerca de 200 mil mortos, de acordo com o governo bósnio, mas há estimativas que apontam mais de 102 mil óbitos.

No entanto, você precisará de um esforço maior para resgatar as narrativas de outro genocídio, o de Ruanda, ocorrido também em abril daquele ano. Quem acompanhou esse terrível episódio tem dificuldade de se esquecer das imagens que, entre abril e agosto de 1994, ocuparam as televisões pelo mundo afora: corpos mutilados, amontoados, abandonados pelas ruas de uma longínqua capital de um distante país africano, além de uma narrativa não muito clara, explicando que “selvagens” em regime de “barbárie” brigavam entre si por algum motivo incompreensível ao mundo “civilizado”.

Ainda há quem resista em assumir que Ruanda foi palco de um dos maiores massacres em massa da história contemporânea, que tudo aconteceu sob o olhar passivo das Nações Unidas – a mesma que, após a Segunda Guerra Mundial, garantiu que o mundo nunca mais veria cenas como as do Holocausto – e ainda há muito a ser esclarecido nessa história.

O conflito entre as etnias hutus e tutsis vinha se acirrando desde a independência do país, em 1962. Enquanto Ruanda esteve sob a administração belga, a minoria tutsi gozava de privilégios. Com a independência, as forças inverteram-se e a maioria hutu assumiu o comando. A divisão estava estabelecida, e o conflito aumentou.

O estopim para o genocídio foi a queda do avião do presidente Juvenal Habyarimana, em 7 de abril de 1994. Em 100 dias, 800 mil ruandeses foram assassinados. O massacre só terminou em agosto daquele ano, quando o grupo tutsi Frente Patriótica Ruandesa, liderado pelo atual presidente Paul Kagame, assumiu o controle. Mas isso não quer dizer que as tensões acabaram no país de clima temperado e estrategicamente localizado na fronteira com a República Democrática do Congo, que possui subsolo rico em diamantes e minerais cobiçados pela indústria de eletrônicos.

José Kagabo, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, é um historiador ruandês, que viveu em exílio na França até 1973 e, em agosto de 1994, voltou a Ruanda para integrar o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, que julgou os crimes praticados no genocídio. As aulas de Kagabo são pouco ortodoxas. Enquanto fala sobre os movimentos de independência na África Central, levanta-se e começa a dançar ao ritmo do Independance Cha-Cha, o hino de liberdade dos congoleses.

Para explicar como foi construída a cisão entre tutsis e hutus, ele não se importa em expulsar, sem maiores explicações, um aluno da sala de aula para, em seguida, lembrar aos que ficaram em silêncio que eles se omitiram frente à injustiça. Em outubro, Kagabo esteve no Brasil, a convite do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerância e Conflitos da USP, para falar sobre o genocídio que completou 20 anos. Ele refuta a ideia da barbárie cega, fala em organização política para o massacre e da perigosa impunidade que ainda reina: “Os grandes responsáveis nunca foram julgados pelo genocídio”. A seguir, ele explica o que aconteceu nesse país tão distante e nem um pouco selvagem naquele 1994.

Brasileiros – O senhor fala que os grandes responsáveis pelo genocídio em Ruanda não foram punidos. O que quer dizer com isso? Afinal, quem são os responsáveis pelo massacre ocorrido em Ruanda em 1994?
José Kagabo:
 Não posso pensar como juiz ou promotor. Sou apenas um historiador e o que posso fazer como pesquisador é reunir o maior número possível de informações de diferentes fontes. Quando falo que é preciso buscar informações é porque elas mostram qual era a ideologia por trás do genocídio. Sabemos que havia organizações políticas, organizações militares e governamentais, milícias organizadas… O Estado de Ruanda reuniu todos os instrumentos que tinha — política e Exército — para apoiar os crimes e os criminosos. O genocídio não foi uma barbárie cega. A cegueira era aparente. Na verdade, foi um crime organizado em diferentes níveis. As investigações conduzidas pelo Tribunal Internacional e pelos tribunais locais da França, Bélgica e, mais tarde dos Estados Unidos, mostram que algumas pessoas se reconheceram culpadas. Outras seguem negando a responsabilidade.

A negativa inclui também organizações externas, países com interesse em Ruanda, como França e Bélgica?
Mais franceses do que belgas. A França deu suporte ao regime que hoje é acusado pelo genocídio. Garantiu suporte financeiro para a compra de armas, suporte militar e suporte diplomático. O que é muito diferente do que a Bélgica fez ou outros países fizeram.

Uma das críticas é de que os países ricos e as Nações Unidas se omitiram frente ao genocídio…
É verdade. Mas podemos acusar os Estados Unidos e a Bélgica de não terem feito nada. Mas a França pode ser apontada pelo seu papel ativo, por ter trabalhado pelo genocídio. Ser acusado pelo que fez é muito diferente de ser acusado pelo que deixou de fazer.

Como a França recebe esse tipo de acusação?
A atuação francesa em Ruanda esteve restrita a pequenos grupos em torno do então presidente François Miterrand. Não era discutida em câmaras ou assembleias. O Parlamento não era suficientemente informado e alguns ministros não sabiam exatamente o que se passava ou mesmo que havia apoio do governo francês. Muitos quando souberam pensaram: “É como sempre acontece com o ‘tribalismo’ na África. Uma selvageria ancestral entre grupos étnicos, entre hutus e os tutsis”.

Mas essa oposição existia, não?
Havia certo background que facilitava esse tipo de interpretação. A oposição entre tutsis e hutus começou a aparecer no final dos anos 1950 e ao longo dos 60, durante o processo de independência. Não posso discordar totalmente de que havia uma divisão original entre hutus e tutsis, mas o desafio é entender como essa divisão foi explorada. Olhando para a situação de hutus e tutsis desde a independência, havia uma elaboração intelectual e política das elites em Ruanda – e quando falamos em elites, estamos falando de pouco menos que uma centena de pessoas que por décadas dominaram muitos milhares de ruandeses nativos que só falavam a língua local. Não sabiam nem inglês nem o francês – essa grande maioria, hutus e tutsis, dividiram por anos o mesmo território, a mesma língua e a mesma religião e nunca entraram em conflitos que pudessem chegar perto do que aconteceu em 1994. A verdadeira divisão foi construída por um discurso dominante que ganha lastro com a colonização europeia, que no início do século 20 categorizou as pessoas de acordo com padrões estéticos e econômicos. Critérios racistas. Não muito diferente do que aconteceu na Europa com os judeus. Em Ruanda, durante anos, milhões e milhões de pessoas não sabiam exatamente o que significava ser um hutu ou um tutsi, não sabiam o que eram ou deixavam de ser. Tanto que era muito comum encontrar casamentos interétnicos, mulheres hutus casando-se com homens tutsis e vice-versa. A separação entre esses dois grupos é resultado de uma elaboração que durou menos de um século, desde o início da colonização belga, e durante a guerra [o movimento de independência] até o genocídio pôde prosperar por encontrar uma população local facilmente manipulável. Foi esse background que permitiu prosperar o lugar comum que explicou o genocídio como uma luta étnica. As pessoas no mundo inteiro liam os jornais, entendiam como um problema tribal e voltavam às suas preocupações cotidianas sem precisar pensar mais a respeito.

Como foi possível construir uma cisão tão grande?
Isso pode acontecer em qualquer lugar em que as pessoas estejam submetidas a algum tipo de opressão. Vamos supor que no Brasil o governo e as elites intelectuais e religiosas se unam para falar que a falta de emprego, as doenças e a pobreza acontecem por causa de um determinado grupo, os indígenas, por exemplo. As pessoas não demorariam muito para se virar contra esse grupo. Esse é o debate que acontece hoje na Europa. Lá, repete-se o discurso de que o desemprego e a insegurança são causados pela presença dos migrantes ou de seus filhos, e o que se vê são pessoas cobrando dos governos medidas para expulsar os migrantes. O genocídio de Ruanda mostra como a propaganda pode ser poderosa, especialmente uma propaganda sem limites, sem contraditório, a propaganda de uma única voz. Em Ruanda, o que se viu foi todo o governo, todo o Exército, toda a polícia, toda a mídia repetindo o mesmo discurso até o ponto em que não havia mais meios para duvidar disso. Não dá para esquecer que, na maioria dos casos, os ruandeses que foram manipulados por essa máquina estatal e saíram às ruas para cometer crimes eram pessoas simples, sem educação formal, que encontrariam grande dificuldade para desafiar o discurso das lideranças. Foi construída uma engrenagem complexa que não pôde ser detida simplesmente porque não havia como duvidar daquela “verdade” que foi entregue.

E sobre os grandes responsáveis, como o senhor chama?
Os relatórios dos tribunais sobre o genocídio mostram que muitos líderes formais seguem negando qualquer responsabilidade sobre o massacre. O contrário acontece com os criminosos locais, muitos reconhecem o que fizeram. Essa é a grande diferença entre o que chamo de os grandes criminosos nas sombras e os executores locais. Isso é muito prejudicial. Por um longo tempo, desde a independência de Ruanda, as pessoas que matavam por motivos étnicos ficaram impunes. Isso deu origem a uma tradição perversa que criou as condições para o genocídio. Crimes sem punição alimentam a violência.

E, agora, 20 anos depois, é possível reconstruir Ruanda?
Reconstruir as conexões quebradas pelo genocídio é um processo longo e há duas questões determinantes. Primeiro, a reconciliação passa pelo reconhecimento da culpa por parte daqueles que foram escalados para matar e, a partir daí, passa a existir a possibilidade de perdão de quem foi vítima. É possível e acontece, mas é difícil. Por isso, é um processo longo. Por outro lado, hoje a população de Ruanda é bastante jovem. A maioria, inocente. Nunca cometeu nenhum crime. Mas mesmo assim, são pessoas que já carregam histórias e memórias duras. Alguns perderam as famílias, outros carregam o peso de saber que seus pais ou suas mães cometeram um crime contra a humanidade. Isso não é motivo de orgulho para ninguém. Que tipo de mensagem estamos transmitindo para essa nova geração? Para promover a paz, temos de trabalhar pensando nessas questões e precisamos de paciência.