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Democracia: outra USP

 

Uma grande Universidade é inevitavelmente plural. Ela não pode ser disciplinar, ainda que queira furtar-se à interdisciplinaridade. É impossível que seja apenas científica, pois as humanidades, as artes e a cultura se impõem, se necessário, contra a vontade dos dirigentes. Ela não é capaz de se isolar, mesmo que nela muitos queiram voltar as costas para a população. Suas recusas, distanciamentos, resistências e preconceitos não a compõem, antes a fragmentam, pois não é possível corromper todas as consciências todo o tempo.

Dividida e sem propostas próprias, a Universidade tenta legitimar-se perante os políticos e os empresários, que duvidam de sua importância para aquilo que chamam de "desenvolvimento sustentável" e lhe fornecem o mínimo de recursos. Em busca da superação destas dificuldades, os acadêmicos dirigentes balbuciam a linguagem dos negócios, falada pelos que financiam a Universidade, e fazem malabarismos métricos sobre suas atividades (*veja a tabela abaixo). Querem demonstrar de uma vez por todas o uso eficiente dos recursos e a necessidade de novos investimentos. Obtêm com isto alguns sucessos e alguns recursos extras, mas colocam a Universidade de joelhos diante do poder e da riqueza, comprometendo a liberdade de pensamento, de questionamento e de expressão.

Para executar tudo isto, os dirigentes forjam mecanismos internos que favorecem aqueles que se dispõem a trabalhar submetidos a esta rígida agenda e aos inevitáveis conflitos de interesse que dela decorrem. Centralização do poder, burocratismo, quantificação excessiva da produção acadêmica, regras excludentes, desconfiança, desqualificação e criminalização, são alguns dos mecanismos postos em prática.

Procura-se ligar os currículos e as pesquisas apenas aos interesses do "mercado" e do "Estado", limitando assim suas interações com outros agentes sociais. Somente a "ciência" hegemônica parece existir: na medicina e na veterinária aquilo que é proposto pelos grandes laboratórios farmacêuticos; na agronomia apenas o agronegócio e os produtores de venenos, transgênicos e máquinas; na psicologia o behaviorismo; na engenharia florestal somente pinus e eucalipto interessam; na comunicação o interesse dos grandes veículos. Que cada um faça esta reflexão para sua área de conhecimento. Tudo o que foge desta hegemonia é ativamente desprezado e mesmo o menor apoio institucional precisa ser obtido por meio de muito trabalho e luta.

Enquanto míngua nossa capacidade de pensar e de criticar esta "ciência" hegemônica, a população está submetida à degradantes condições de vida - dezenas de milhões em favelas, por exemplo - e a trabalhos embrutecedores, perigosos e mal remunerados. Preferimos pensar que estas coisas não tem relação com as decisões que tomamos dentro da Universidade, mas tais ilusões não nos caem bem, somos aqueles que querem fazer narrativas realistas, somos "cientistas".

Eleições diretas para Reitor e reformulação do estatuto da Universidade são boas medidas, mas também claramente insuficientes para dar conta da mudança cultural que precisamos desencadear e produzir. Estamos longe de uma substantiva convivência democrática, que demandará uma profunda transformação de nossos hábitos mais enraizados e, principalmente, um respeito profundo pela diversidade, pelos conhecimentos outros, pelos direitos emergentes, pelo ambiente e pelas pessoas.

Para se tornar efetivamente democrática, a Universidade precisará entender que são intoleráveis tanto a desigualdade e suas consequências sociais quanto a violência policial e paramilitar que as sustentam. Os compromissos e ações institucionais da Universidade deverão refletir inequivocamente este entendimento. Hoje, no entanto, refletem antes preconceito, despreparo, insensibilidade política, descaso e interesses econômicos  mesquinhos. Claro, há exceções, que a Universidade não apoia, mas, sem qualquer pudor, explora ao se preocupar mais com sua imagem do que com seus feitos.

Precisamos rever os valores que guiam a formação, as pesquisas, as relações com a sociedade e as carreiras, assumindo robustos compromissos com a construção de uma sociedade muito menos violenta, porque mais igualitária justa e democrática. Para dar conta do futuro que se aproxima, é necessária uma USP que conviva ativa e comprometida com sua transformação para que a Democracia se processe em todas as dimensões tanto do poder, como do fazer de suas responsabilidades.

 

 

                         Esta é a posição dos pesquisadores do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e dos Conflitos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e dos docentes e estudantes do Programa de Pós Graduação Interdisciplinar - Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades.

 

*Os dados da tabela abaixo são do anuário estatístico da USP.

Ano

1989

1998

2002

2005

2012

Cursos

126

130

189

214

249 (97,6%)

Alunos Graduação

31.897

33.934

42.554

48.530

58.303 (82,7%)

Cursos de Mestrado

230

257

267

289

332 (44,3%)

Cursos de Doutorado

189

230

252

274

309 (63,4%)

Cursos PG

419

487

519

563

641 (52,9%)

Alunos PG

12.914

21.009

23.709

25.007

28.498 (120,6%)

Total Alunos

44.811

54.943

66.263

73.537

86.801 (93,7%)

Docentes

5.626

4.705

4.884

5.222

5.860 (4,2%)

Aluno/Docente

7,96

11,67

13,57

14,08

14,81 (86,05%)

Aluno PG/Docente

2,3

4,47

4,85

4,79

4,86 (111,3%)

Funcionários

17.735

14.659

14.952

15.295

16.839 (-5%)

Aluno/Funcion.

2,53

3,74

4,43

4,81

5,15 (103,6%)